Patrícia Soares Viale
Suíça - 10 de outubro de 2002
Um café por favor. Algo mais senhor? Não, obrigado. V.
abre sua pequena caderneta de capa vermelha e com a caneta, de tinta também
vermelha, escreve algumas palavras… insultos são nada mais que um tronco oco
caído ou caindo no solo. Uma boa frase para aquecer os dedos. Seu café senhor.
Obrigado. Duas colheres de açúcar fazem V. largar a caneta. Mexe devagarinho a bebida
quente e bebe em goles minguados, curtos, quase inexistentes. Antes queimar os
beiços do que as mãos. Que arranquem minha língua, mas nunca meus dedos. Preciso
manter-me forte para continuar a luta. Já chegam os cabelos que perdi. E a
xícara volta ao pires. E a caneta à mão. Que passem todos os cidadãos.
Examinarei seus olhos e suas línguas. Não tenham medo. Isso é um exame de
rotina. O senhor de passo ligeiro e olhar baixo. Por favor, aproxime-se. Diga „33“.
Mais alto. Não, o senhor não está doente, apenas corrompido. Aliviado? Não diga
isso. Seu caso pode mais grave que uma anemia. Os glóbulos brancos recuperam-se
com vitaminas, ferro e uma boa alimentação. E esse tratamento em nada o
ajudará. Com o caráter a coisa não é tão simples. Quantas vezes o senhor baixou
a cabeça para alguém? Sentiu-se bem? E por que? Meu senhor, para que eu possa
ajuda-lo é preciso muita persistência e determinação de sua parte… ei, onde o
senhor vai? E a consulta? Eu não terminei. Isso é meu trabalho. E o sujeito nem
pagou. Mocinha, por favor. Sim. Mais um café.
Como vai a senhora? Está tão triste, com os olhos perdidos buscando uma
direção, uma referência. O problema é que nada disso existe. Não estou
mentindo. Estou tentando salvar sua vida. Sobre a lógica, minha senhora, é melhor
fecharmos os olhos e respondermos no escuro. A lógica desse mundo de mapa-mundí
e dessa vida talvez esteja em se criar lógicas particulares. Algo próprio. Eu
posso explicar melhor, permita-me apenas um gole desse café. Eles querem me
calar, mas não irão conseguir. Eu posso tomar isso e sem medo. Senhora, se
formos analisar os fatos em um contexto geral descobriremos que nada possui
nexo ou sentido. Então, eu mesmo preciso criar a lógica de minha vida. Por que
viver(?), por exemplo. Eu vivo porque vim parar aqui. O motivo disso não sei.
Colocaram-me, jogaram-me aqui e aqui estou. Por isso vivo. Certo? E qual a
lógica sobre eu ter sido jogado aqui? Ah! Essa não existe. Calma, calma, me
escute por obséquio. Bem, chegamos em um outro ponto importante. Nesse
parágrafo posso dizer que a lógica ainda não tinha sido inventada. E antes da
lógica, existe o quê então? Boa pergunta, vejo que és um menino inteligente,
apesar desses cabelos. O impulso. O impulso vem antes da lógica, é algo que
nasce com todos nós. Pode ser do tipo preguiçoso ou do tipo dinâmico. Às vezes
fica anos dormindo e de repente, num salto enlouquecido, golpeia a todos sem dó.
Nunca se sabe como esse monstrinho se comportará. Vejam aquele bebê, é um
impulso só, nada de lógica. Visualizem o impulso como um grande carneiro de
chifres grossos, mas não pontudos. Ele não machuca, ele somente acerta. O
carneiro mira, baixa a cabeça e avança. Passa por cima, embola, empurra,
desmonta. O impulso não tem freios, somente ação. Repetindo, o impulso pode ser
visto como um carneiro, não como uma ovelha. As ovelhas fazem parte de outra
lição, que explicarei nas próximas semanas. Então vamos à sequência: impulso,
lógica e lógica criada. Quando se chega nesse terceiro estágio é possível
perceber que já tens duas cabeças, geralmente uma branca e a outra preta. Mas
prestem atenção, essas duas cabeças não pensam da mesma maneira. Nunca. Elas questionam,
geram conflitos para então chegar à lógica criada. É um processo divertido,
apesar de cansativo. São como essas crianças que já caminham, que mexem nas
coisas, requerendo atenção a todo momento. Precisas preparar o alimento diário,
levar para passear, trocar as fraldas… é filho teu! Nunca te esqueças disso.
Pobres pais que esquecem o impulso, a lógica e a lógica criada. São seres
abandonados, largados, sem esperança… onde vocês vão? Esperem, ainda tenho
outras coisas importantes para explicar. Mocinha! Sim. A conta. Já foi paga.
Por quem, se estou sozinho?
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