domingo, 6 de setembro de 2020

De igual para igual


 Patrícia Soares Viale - 15 de abril de 2002 - escrito durante temporada na Suíça 


casa dos meus avós maternos, Fábio e Neusa, na Barragem do Salto

Olhei pelo furo na parede. Parede de madeira. Casarão com cara caiada. Tal como faço nas noites de sexta feira. Pelo furo nada vejo. Nem vó, nem vô, nem neta ou cachorro. Também poderia ver um homem, um poeta, um assassino. Mas no nada fico, assim como essas armaduras amadeiradas isolam-nos daquele mundo. Não canso de procurar por algo nesse espaço tão limitado. Ouço minha vó chamar e dizer que o arroz doce ainda está quente. Quentinho com canela. Tão suave e perfumado. Bem como a hora do banho: sabonete, xampu, creme rinse, perfume e talco. Quero não! Está quente! E minha avó assopra a pequena quantidade na colher. Abro a boca e pronto. Tão feliz quanto a felicidade do encontro. O poeta recitou versos. Não de amor, mas de eternidade. E feliz acreditei que a vida seria um eterno reencontro. Quer mais? Sacudi a cabeça num violento “não” e com os olhos fechados mais uma vez balançei. Agora para cima e para baixo. Minha vó ria manso e assoprava uma nova porção. Pequenina como minha boca. Delicada como convinha para o momento. E na impaciência daquele instante eu fingia ter a boca cheia. Tapava os olhos. Procurava por coisas que pudessem existir somente na minha imaginação. E pacientemente minha avó esperava. O riso sereno. A voz sem espera. A dedicação escolhida. Abraçava aquele corpo cansado. Engolia tudo e ria com os dentes. Com corpo e com o pular. Saltava pela cozinha e corria para o pátio. Já com a boca fria. Com o riso solto. E quando paravam as pernas, olhava com ar de averiguação. Lá estava ela na janela. O mesmo sorriso. A colher ao lado do pote. Pronta para uma nova porção.

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