sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Por mais cidadã de segunda classe

2019 e ainda vivemos limitados por crenças e conceitos estipulados sabe-se lá por quem ou por quê. Ainda atendemos as expectativas alheias. Ainda esperamos a aprovação do outro. Buchi Emecheta, lá nos anos 60, disse que não queria viver assim. Se hoje é difícil, imagine numa época onde a mulher pouco era considerada. Era boa para arrumar a casa e criar os filhos. Mais que isto? Não se fazia necessário.


Buchi Emecheta é a escritora nigeriana de "Cidadã de Segunda Classe", livro publicado em português pela editora "phoda" Dublinense. Buchi Emecheta nasceu em 1944 na cidade yorubá de Lagos, na Nigéria, África, mas foi na terra natal de seus pais, Ibuza, onde ela passou boa parte da infância. 
Uma das paixões da menina era ouvir histórias dos mais velhos. Em Lagos, conheceu bons contadores, mas, para ela, a maneira igbo era diferente. Cresceu ouvindo a tia, a quem chamava de Grande Mãe – as contadoras, seguindo a tradição local, eram sempre mães de alguém. Buchi costumava sentar “por horas a seus pés, hipnotizada pela sua voz de transe”, deleitando-se com as proezas de seus ancestrais. As visitas a Ibuza, aliadas ao prazer e ao conhecimento obtidos com as narrativas, trouxeram a Emecheta a certeza de que seria, também, uma contadora de histórias.
E por falar em história, "Cidadã de Segunda Classe" conta a história de uma mulher africana (Adah) obstinada, que aprende a viver vivendo. O livro se divide em 13 capítulos e não é livro para ler numa sentada. É livro para ser degustado por capítulos, voltar nas páginas, assinalar trechos como "Estava com tanta fome que poderia ter comido suas entranhas" (página 157) Mas este não é um livro que se concentra em fomes e dores físicas. Este é um livro para se resgatar a fé na vida e em si mesmo. Reclamamos porque está calor. Reclamamos do frio. Nos queixamos o tempo todo, como se fossêmos vítimas reais. E as tais vítimas reais acalentam a vida como um presente. A vida real com acertos e desacertos. Buchi Emecheta escreve sobre esta vida.


Durante a infância, o irmão da escritora  privilegiado por ser menino, foi para a escola, enquanto Buchi ficou em casa. Imaginem separar os irmãos por sexo e benefícios. Meninas condenadas à ignorância. Meninos tendo direito a uma oportunidade na vida. Mais tarde, após diversos e insistentes pedidos, foi matriculada em uma escola missionária para meninas, onde aprendeu línguas nativas e o inglês – seu quarto idioma.
Apesar dessa conquista Buchi Emecheta viveu uma infância dura. No entanto, a pobreza e a subnutrição, que assolaram boa parte de seus anos de juventude, somadas à perda precoce de seu pai (tinha apenas oito anos a escritora), não lhe diminuíram a vontade de viver: um desejo intenso que nunca a abandonaria.


No capítulo "Aprendendo as Regras", Adah deu à luz ao terceiro filho, em um hospital londrino. Em meio às dores da recuperação de uma cesariana e a um auto questionamento sobre a decisão de voltar a viver ou não, Adah observa as outras mães em recuperação. Um mundo tão diferente, que ela sequer imaginava, com regras de vestuário e comportamentos numa maternidade pública. Mas o mais chocante foi ela perceber que existia outras relações entre um homem e uma mulher. Ali ela viu, através dos outros, o quê era carinho, preocupação, romantismo, zelo. "Adah não conseguia parar de chorar. Não queria parar porque poderia cair na tentação de contar a verdade a eles. Poderia cair na tentação de lhes contar que pela primeira vez na vida detestava ser quem era. Por que ela não podia ser amada como um indivíduo, do jeito que a mulher composta estava sendo amada, amada pelo que era, e não apenas por ser capaz de trabalhar e passar adiante o dinheiro, como um criança comportada? Por que ela não podia ser abençoada com um marido como o daquela mulher que tivera de esperar dezessete anos pela chegada do filhinho? O mundo parecia desigual, tão injusto. Algumas pessoas eram criadas com todas as coisas boas prontinhas à espera delas, outras apenas como enganos. Enganos de Deus" (página 167).

Em 1954, recebeu uma bolsa de estudos em uma escola de elite, em Lagos. Durante esse período, a mãe de Emecheta faleceu, e ela foi passada de um parente distante para outro. No período de recesso dos estudos, enquanto suas colegas voltavam para as confortáveis casas das famílias, ela permanecia no dormitório da escola, encontrando abrigo nos livros e na imaginação. A volta das férias era seu momento de brilhar, maravilhando as colegas com histórias sobre suas supostas aventuras.
Aos 11 anos, ela conheceu e se tornou noiva do estudante Sylvester Onwordi; aos 16, eles já estavam casados. Logo nos primeiros anos, nasceram dois filhos – chegariam a cinco no total. A família mudou-se para Londres, onde Onwordi entrou para a universidade.
Emecheta viveu um casamento infeliz e, não raro, abusivo e violento (sim, ela apanhou fisicamente e sofreu violência psicológica). Quando começou a escrever em seu tempo livre, chegando ao rascunho de um romance, viu Onwordi queimar os textos, consumido pelo sentimento de posse e totalmente ameaçado pela força de vontade da esposa e seu desejo de conquistar uma graduação. Buchi Emecheta estava decidida a se tornar escritora. Aos 22 anos, Buchi consumou o divórcio, no entanto, Onwordi renegou a paternidade. Sem dinheiro, em um país estranho e com seus cinco filhos para cuidar, manteve-se com obstinação e trabalhou em lugares como a Biblioteca de Londres, enquanto estudava à noite. Em 1974, estava graduada em Sociologia.


Em janeiro de 2017, aos 72 anos e debilitada pela demência, Emecheta faleceu. Sua obra expandiu as representações da mulher africana, ao redor do mundo, estabelecendo-a como uma das melhores contadoras de histórias de seu tempo. “Existem milhões de mulheres africanas que nunca deixam suas casas, nunca deixam seus vilarejos; esposas em vilarejos continuam na escravidão. Quanto aos meus livros, eles podem ser positivos, ou podem ser negativos. Mas eu acredito que se você cria uma heroína, seja africana ou europeia, com educação – não necessariamente com dinheiro, mas educação – ela ganha a confiança para poder lidar com o mundo moderno”.

Por que ler Buchi Emecheta? Porque buscamos o amor próprio a todo custo e isto não está certo. Eis uma escritora que precisa ser lida por meninas e meninos. Buchi nos mostra que se amar é ser leal a si mesmo, mesmo que o mundo desabe nas nossas cabeças. E um mundo desabado é uma chance ímpar de reconstruirmos um novo mundo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Por que me tornei uma colagista

Em 2001 fiz um auto exílio na Suíça, em função de um casamento. Jornalista no Brasil, lá me descobri uma analfabeta. Além de precisar apre...