sexta-feira, 18 de outubro de 2019


Cálculo Renal

por Patrícia Soares Viale, outubro 2019

E de repente, a vida tropeça numa pedra. Numa não. Em três pedras. Duas pedras no rim esquerdo e uma terceira em deslocamento no canal urinário. Esta se movimenta e eu me requebro, grito e me reviro em dor. Chegou sem avisar. Uma dor que aperta as costas e vai desmontando. Parece uma corda amarrada bem justa na linha do umbigo. Ela deu sinais em setembro, em forma de fisgadas. Achei quer era frescura. Que era cansaço. Que era efeito colateral do anticoncepcional. Em quatro dias foram três hospitais diferentes, sete médicos, exames de sangue e de urina, sondagem e tomografia. Foram várias picadas nos braços e na barriga (teve até morfina!) e muitos remédios para controlar a dor. Codeínas, cloridratos, antibióticos, dilatadores... uma mulher de um metro e setenta e quatro centímetros se curvando a uma pedra de menos de um centímetro.

Desde o dia quatro de outubro, quando a primeira crise me derrubou, tenho pensado sobre doença e saúde. O que se passa dentro de nós? O que se passa fora de nós? As doenças são reflexos da nossa poluição emocional, do que fomos deixando pelo caminho: auto estima. Num ano, que pede tanta revisão íntima, me percebi uma sacola vazia. Tanto trabalho feito e nenhuma percepção real do que se vive. A correria dos pensamentos faz isto: muito fazemos, pouco sentimos. E daí uma pedra, que insiste em deslizar no meu canal urinário, me obrigou a parar e me olhar no espelho. Uma mulher descabelada, com a dor estampada nos olhos, preocupada com a largura das mangas da blusa por causa do aceso ao soro, teve que se ver sozinha. Sim, sozinha! Tive uma legião de apoiadores nestes dias. Pessoas que me carregaram de um lado para o outro, cuidaram da minha filha e da minha casa, ajudaram o João, telefonaram, mandaram mensagem, enviaram-me reiki, fizeram floral, me visitaram no hospital, seguraram a minha cabeça para vomitar, rezaram por mim. Sou muito agradecida a todos. Não foi em relação a estas pessoas que falo da minha solidão. A solidão é na hora de sentir. Não se pode repartir a dor. E por muitas horas os remédios não fizeram efeito, as palavras não consolaram. E eu ficava com os olhos cravados nas paredes vazias dos hospitais, com a umidade das minhas lágrimas e aquela dor que me cavava um buraco.

Buraco este que me levou para várias fases da vida, para várias dores vividas. E mão nenhuma podia tirar tudo aquilo de mim. Dor amadurece. Dor faz evoluir. Mais que crescer, a gente se permite sair da cegueira humana e encarar a verdadeira face. Na veia que estourou e deixou o sangue vazar lembrei do meu irmão Francisco e sua morte. Nos hematomas das agulhas lembrei da pele sensível da minha avó Neusa e da minha mãe Eloisa. Na solidão lembrei da doença que acabou com a vida do meu pai Ricardo. E nem mesmo o carinho da minha irmã Cíntia, do meu cunhado Fernando, do meu companheiro João e da minha filha Maria Rita aliviaram aquela dor. E ninguém pode aliviar. A não ser eu mesma.

O laudo da segunda tomografia diz que as pedras continuam lá. Uma nova crise pode acontecer a qualquer momento. E até ontem eu tremia com esta possibilidade. Parei minha vida. Parei minhas leituras. Parei meu trabalho por medo. Um medo que se juntou a outros medos e se tornou gigante. Os medos cospem na nossa cara, nos desafiam, riem de nós. Eu tenho duas possibilidades a partir de agora: enfrentar, cuspir na cara do medo, empurrar ele  e seguir em frente ou recuar e continuar chorando escondida num cantinho. Escolhi carregar o remédio para dor na mochila e seguir. Não quero mais carregar medos e dores. Eu tenho um metro e setenta e quatro centímetros.

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