Cálculo
Renal
por
Patrícia Soares Viale, outubro 2019
E de repente, a vida
tropeça numa pedra. Numa não. Em três pedras. Duas pedras no rim esquerdo e uma
terceira em deslocamento no canal urinário. Esta se movimenta e eu me requebro,
grito e me reviro em dor. Chegou sem avisar. Uma dor que aperta as costas e vai
desmontando. Parece uma corda amarrada bem justa na linha do umbigo. Ela deu
sinais em setembro, em forma de fisgadas. Achei quer era frescura. Que era
cansaço. Que era efeito colateral do anticoncepcional. Em quatro dias foram
três hospitais diferentes, sete médicos, exames de sangue e de urina, sondagem
e tomografia. Foram várias picadas nos braços e na barriga (teve até morfina!)
e muitos remédios para controlar a dor. Codeínas, cloridratos, antibióticos,
dilatadores... uma mulher de um metro e setenta e quatro centímetros se
curvando a uma pedra de menos de um centímetro.
Desde o dia quatro de
outubro, quando a primeira crise me derrubou, tenho pensado sobre doença e
saúde. O que se passa dentro de nós? O que se passa fora de nós? As doenças são
reflexos da nossa poluição emocional, do que fomos deixando pelo caminho: auto
estima. Num ano, que pede tanta revisão íntima, me percebi uma sacola vazia.
Tanto trabalho feito e nenhuma percepção real do que se vive. A correria dos
pensamentos faz isto: muito fazemos, pouco sentimos. E daí uma pedra, que insiste
em deslizar no meu canal urinário, me obrigou a parar e me olhar no espelho.
Uma mulher descabelada, com a dor estampada nos olhos, preocupada com a largura
das mangas da blusa por causa do aceso ao soro, teve que se ver sozinha. Sim,
sozinha! Tive uma legião de apoiadores nestes dias. Pessoas que me carregaram
de um lado para o outro, cuidaram da minha filha e da minha casa, ajudaram o
João, telefonaram, mandaram mensagem, enviaram-me reiki, fizeram floral, me
visitaram no hospital, seguraram a minha cabeça para vomitar, rezaram por mim.
Sou muito agradecida a todos. Não foi em relação a estas pessoas que falo da
minha solidão. A solidão é na hora de sentir. Não se pode repartir a dor. E por
muitas horas os remédios não fizeram efeito, as palavras não consolaram. E eu
ficava com os olhos cravados nas paredes vazias dos hospitais, com a umidade das
minhas lágrimas e aquela dor que me cavava um buraco.
Buraco este que me levou para
várias fases da vida, para várias dores vividas. E mão nenhuma podia tirar tudo
aquilo de mim. Dor amadurece. Dor faz evoluir. Mais que crescer, a gente se
permite sair da cegueira humana e encarar a verdadeira face. Na veia que
estourou e deixou o sangue vazar lembrei do meu irmão Francisco e sua morte.
Nos hematomas das agulhas lembrei da pele sensível da minha avó Neusa e da
minha mãe Eloisa. Na solidão lembrei da doença que acabou com a vida do meu pai
Ricardo. E nem mesmo o carinho da minha irmã Cíntia, do meu cunhado Fernando,
do meu companheiro João e da minha filha Maria Rita aliviaram aquela dor. E
ninguém pode aliviar. A não ser eu mesma.
O laudo da segunda
tomografia diz que as pedras continuam lá. Uma nova crise pode acontecer a
qualquer momento. E até ontem eu tremia com esta possibilidade. Parei minha
vida. Parei minhas leituras. Parei meu trabalho por medo. Um medo que se juntou
a outros medos e se tornou gigante. Os medos cospem na nossa cara, nos
desafiam, riem de nós. Eu tenho duas possibilidades a partir de agora: enfrentar,
cuspir na cara do medo, empurrar ele e
seguir em frente ou recuar e continuar chorando escondida num cantinho. Escolhi
carregar o remédio para dor na mochila e seguir. Não quero mais carregar medos
e dores. Eu tenho um metro e setenta e quatro centímetros.
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