de Patrícia Viale
Se minha tarde
for como a tal
manhã de hoje ,
juro que
me rasgo inteiro .
Talvez começando pela
boca . Comer
de cabeça cheia
será difícil . O nariz
me coça
e coçar não
adianta enquanto eu
não digerir a
manhã . Céu
claro , trânsito
caótico , reclamações sem motivo , ligações mal
interpretadas e o meu nariz reclama. Eu
coço o meu nariz .
Por dentro
e por fora .
Violentamente sem
resquício algum
de suavidade . Às vezes
até sangra. Me
assusto, trato com
remédio sério
então . Olho
o vermelho chamando minha
atenção . Procuro lenço .
De papel ou
de pano . Mas
não encontro
nada . Passo
os dedos pela
cartilagem e limpo
nas calças . Vou curando cada ferida momento a momento
e curado o nariz volto a coçar .
Ao entrar no restaurante
de todos os dias
foi desta maneira que
começou. Tempos atrás
importunei o nariz de leve . Mal
toquei. Acho que foi bem
assim . Um
ato inconsciente
ou premeditado. Constatei logo após ter
realizado o fato , pressenti o prazer e iniciei a feitura
completa . Assim
passei a coçar o nariz ,
toquei os dedos na narina
e fiz. Sem entender
muito . Sem
pensar . Foi automático .
Faço e pronto . Coço o nariz por dentro e por fora . Às vezes até cutuco, tiro
cascas e casacas .
E daí? A moça
chegou. Aquela de todos os dias . Não é sempre . Falo sobre o nariz , não da mulher . Ela eu enxergo
no restaurante diariamente, na hora do almoço .
Enquanto coço o nariz ,
ela se serve de saladinhas e pouca coisa nos pratos quentes . Por que ? Ela não come comida
de fogão ? Bem ,
mas voltando ao meu
nariz . Não
é ato contínuo ,
furungo só quando
tem as peles secas
ditas. Estas cascas se criam regularmente e me
irritam profundamente . É algo preso , fixo , não saí, obstáculo puro que dá vontade
de limpar o salão
sem sequer
dançar a valsa .
Deve ficar assim
quando esqueço de assoar
o nariz . No banho
dou uma assoada, porém a preguiça bate e dia
sim , dia
não , faxino o nariz .
Sequer limpo
o mesmo nos
dias não .
Ando assim , um
tanto indisposto .
Esquecendo o nariz , cotovelos ,
calcanhares e unhas
do dedo mínimo .
Por que ?
Não sei. Talvez
seja mal humor .
Alguma falta química
no organismo . Alguma perda não
pressentida. Ela come tão devagar . Os
cotovelos alinhados
junto ao corpo .
A cabeça muito
erguida. Os cabelos para
trás , bem
comportados. Mastigação lenta . Pouca comida no
garfo . Olhares
baixos . Será que
ela coça
o nariz ? Em
que momento ?
Quando come? Ou
escondida no banheiro ? A verdade
é que só
questiono as coisas quando
estas se tornam crônicas de alguma forma . Instalam-se como
cupim na madeira
e corroem, comem sem compaixão o que
está ao redor . Comem, mastigam e
engolem. Mas não
excretam. As negações me fazem pensar . E depois de tanto
pensar é que consigo tomar alguma atitude , daquelas de mudar a direção do que vem
acontecendo. E a moça continua ali . Bem sentada. Ela parece a negação
de tudo que
questiono. Esta mulher me provoca. Odeio olhar para ela que nunca
coloca o dedo no nariz .
Ao menos disfarçadamente. Isto é o normal .
Maluquice é este
auto-controle das mãos . Quem explica? Coçar o nariz é quase
uma regra diária .
Já percebi o tocar ,
o fuçar . Já
senti o sangue de tanto
cutucar , só
que recorrer
a uma atitude não
é nada fácil .
Por que ?
Acho que meu
nariz tornou-se um
refúgio . Um
esconderijo . Para tudo . Vou colocando ali
medos , inseguranças ,
traumas , perdas ,
frustrações , sonhos
não vividos .
Todo o lixo
de uma vida . Uma bagagem
bem pesada e antiga , sem nada de doçura ou compensações .
Uma mochila bem
fechada ajustada nas costas . Fico tão reto com esta sacola
que nem
ouso olhar para os lados A bagagem
dela deve ser maior
que a minha .
É o que parece. Ela
não levanta os olhos !
Não mexe as mãos
e sequer coça
o nariz ! Quem
é esta mulher ? O que
ela quer ?
Como pode viver
desta maneira ? Como
ela faz para seguir em frente ? Só
arrumando as costas ? E ela acorda naturalmente ? Cadê
a mochila dela? Por
que ela
não dá um
sinal ? Eu
prossigo em linha
reta para me servir no buffet, para não perder o ritmo do passo . Um após o outro .
Continuo. E muitas vezes este seguir em frente de nada adianta. Apenas
se passa e pronto .
Os olhos alinhados
não enxergam as árvores
ao lado ; o passarinho
que voa em
zigue zague; a estradinha curta com duas casas
de madeira ao longo .
Quanta coisa não se vê , não se sente.
E que besteira
toda é esta de estradinha, passarinho , carinho ,
amiguinho? Eu não
convivo com nada
disto. Só pelo
livro bonitinho que
comprei na semana passada .
Lá tem tudo
isto . É uma fazendinha de vida simples . Conta a história de um homem e de
uma mulher . Casados .
O homem muito
calmo e a mulher ...
como era
mesmo a mulher ?
Lembro só do trecho
da torta de maçã ,
que ela
colocava o doce recém feito para assar
e esperava o marido retornar
do trabalho . A moça
do restaurante ! A moça
do restaurante é a do livro ! Sim , elas são a mesma pessoa . E nenhuma coça o nariz ! Mas ... Como
pode? A não ser
que ... não
pode?!... claro ! Elas
vivem uma vida modesta, discreta , contida. E aqueles
que têm tudo
contido não podem coçar
o nariz . Pois
coçar o nariz
é mexer no não
contido. É mexer no espalhado que
não quer
se juntar .
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