segunda-feira, 14 de setembro de 2020

O Eu de uma mirtácea


 

    

           por Patrícia Soares Viale

             Durante meu crescimento invejei outras árvores, outras espécies. Chegava a chuva, aquentava-me o sol e eu invejava tipos como as lauráceas, tão cheirosas e nobres. Perguntava-me o motivo daquela hierarquia toda. Umas aqui, outras ali. Por que algumas chegavam antes das outras? Reis, majestades e a plebe. Sempre juntos, apesar das distinções... certo dia um biólogo chegou por aqui e puxou-me pelas folhas. Arrancou algumas. Cheirava-as. Examinava-as de perto, de longe, de trás e de frente. “Eis uma mirtácea!”, gritava para tantas outras pessoas que o acompanhavam. Biólogo vaidoso, teria me descoberto? Assim parecia pelo seu comportamento. Mas o biólogo empolgado era um recém-formado, daqueles que saem da faculdade entusiasmados em descobrir novas espécies dentro de tantas famílias. Claro que ele sabia que nós, as digníssimas mirtáceas, somos a mais rica família em frutos tropicais. São minhas parentes a goiabeira, o araça, o guabijú. Também são primos a jabuticabeira, a uvaia, a guabirobeira e também e a cerejeira. Se ainda não me apresentei, chamo-me pitanga. De folhas em tons verdes suaves e leves nuances avermelhadas. Folhas tão doces no cheiro, no sabor e na aparência. Sou uma planta um tanto meiga, nada tenho de agressiva em minha aparência... mas a dor me impede de continuar esta narração. O biólogo incoveniente incentivou seus seguidores a me provarem, a me desfrutarem. “Sintam a textura da folha. Esfreguem a folha e provem do cheiro. Encostem no caule”. Alguém já puxou seus cabelos repetidamente, sem intervalo algum? E se fosse nele? Nos seus cabelos? Beliscões na  sua pele? Por pouco não chorei na frente daqueles vândalos, que gritavam uns aos outros “eis uma mirtácea”.

            Confesso que sou um tanto tímida. Preciso de proteção das árvores mais seguras. Não sou como as vassouras, pioneiras, audazes e guerreiras. Elas chegam primeiro. Conquistam território. Deixam tudo ao redor um pouco mais seguro. E assim então chegamos nós. As mirtáceas. Não saberei agredir estes que me invadem no meu traqüilo ambiente. Não sou de guerras. Sou de compartilhar com tantos outros o melhor da floresta Aprendi a ser solidária. Deve ser instinto de árvore. Dizem que somos o maior número de espécies na tão ameaçada Mata Atlântica. Não sei. Pouco entendo sobre questões humanas. Eles parecem confusos. Falam muito, gesticulam muito, se movimentam ainda mais. Mas vivem o mínimo. O que sei é que realmente sou uma mirtácea. Que preciso do sol e da chuva. Admirada por uns e desprezada por outros. Dizem que sou um tipo comum. Que mal chego aos pés de uma angustifolia. Concordo plenamente. Não me incomoda ser mais baixa, ter que florescer todo ano e oferecer meus frutos aos animais, inclusive o homem. Não me importo com as comparações. Estar viva até o presente me consola. Num momento de tantos conflitos e mortes por causa de territórios e riquezas foram-se as araucárias e os ipês, árvores tão distintas. Ficaram as mirtáceas, tipinho normal, aquelas que foram educadas em comunidade. Nunca se sobressaíram individualmente. E depois que o último rapaz arrancou a centésima folha, de meus galhos, posso suspirar e dizer: - Ainda bem que sou uma destas.

domingo, 6 de setembro de 2020

De igual para igual


 Patrícia Soares Viale - 15 de abril de 2002 - escrito durante temporada na Suíça 


casa dos meus avós maternos, Fábio e Neusa, na Barragem do Salto

Olhei pelo furo na parede. Parede de madeira. Casarão com cara caiada. Tal como faço nas noites de sexta feira. Pelo furo nada vejo. Nem vó, nem vô, nem neta ou cachorro. Também poderia ver um homem, um poeta, um assassino. Mas no nada fico, assim como essas armaduras amadeiradas isolam-nos daquele mundo. Não canso de procurar por algo nesse espaço tão limitado. Ouço minha vó chamar e dizer que o arroz doce ainda está quente. Quentinho com canela. Tão suave e perfumado. Bem como a hora do banho: sabonete, xampu, creme rinse, perfume e talco. Quero não! Está quente! E minha avó assopra a pequena quantidade na colher. Abro a boca e pronto. Tão feliz quanto a felicidade do encontro. O poeta recitou versos. Não de amor, mas de eternidade. E feliz acreditei que a vida seria um eterno reencontro. Quer mais? Sacudi a cabeça num violento “não” e com os olhos fechados mais uma vez balançei. Agora para cima e para baixo. Minha vó ria manso e assoprava uma nova porção. Pequenina como minha boca. Delicada como convinha para o momento. E na impaciência daquele instante eu fingia ter a boca cheia. Tapava os olhos. Procurava por coisas que pudessem existir somente na minha imaginação. E pacientemente minha avó esperava. O riso sereno. A voz sem espera. A dedicação escolhida. Abraçava aquele corpo cansado. Engolia tudo e ria com os dentes. Com corpo e com o pular. Saltava pela cozinha e corria para o pátio. Já com a boca fria. Com o riso solto. E quando paravam as pernas, olhava com ar de averiguação. Lá estava ela na janela. O mesmo sorriso. A colher ao lado do pote. Pronta para uma nova porção.

Por que me tornei uma colagista

Em 2001 fiz um auto exílio na Suíça, em função de um casamento. Jornalista no Brasil, lá me descobri uma analfabeta. Além de precisar apre...