por Patrícia Viale
Pinço os pêlos. Um a um. Meu divertimento no final
da tarde. Os olhos dela arregalavam a cada uma das minhas palavras. Nunca
imaginei uma depiladora embaraçada ao falarmos sobre penugens. Pinçar os pêlos
da virilha. Sempre. Obrigo-me a parar. Pensar. Namorar-me. São instantes em que
o mundo perde-me. São momentos de dor. Em cada puxão, uma sensação real. Às
vezes sangra e já não importa. Cada pêlo é um algo sem função. Precisa ir
embora. Bater a porta. E como é delicioso esse fechar de portas. E quanta coisa
boa virá. Tudo mentira, se bem pensado. Já estou arrependida por ter começado
essa conversa. Por que é tão difícil conversar sobre coisas nossas? Talvez
porque não tenha sido matéria obrigatória na escola.
Pensando
bem acho que nunca fechei porta alguma. Talvez por falta de coragem. Ou
ausência de vocação. Uma estúpida. Sempre deixei-me atropelar pelo fator
alheio. Parecia mais prático e menos cansativo. Assim foram os amores, os
trabalhos, os sonhos e o dia-a-dia. Um atropelo. Bem, ao menos estou viva. Já é
algo. Ela nem me olha mais. Coloca a cera quente na perna, espera endurecer e
arranca. Doe, pareço sumir neste instante. Que ódio nascer com pêlos. Qualquer
dia morro num desses arranques. Então tente imaginar essa moça aqui morta.
Enforcada com suas próprias tripas. Ou então com uma tira de jornal. Ao menos
estaria garantida uma morte informativa. A próxima cliente chegou. Ainda falta
axila e virilha. A seguinte reclama. Está com pressa e eu não. A depiladora me
olha com piedade. Você se importa se terminarmos depois ou em um outro dia?
Quem sabe sábado? Fiquei com pena dela e fui embora metade pelada, metade
peluda.
Esqueço
sábado e qualquer outro dia que tenha valido a pena. Nada mais importa quando
ainda se têm pêlos. Filamentos que me acompanham por toda parte e participam de
cada acontecimento. Desprezo-os e não me interesso por suas funções. Tenho
cólicas e procuro uma farmácia. Gosto de tomar analgésicos, que tiram todas as
dores, até um pouquinho das de alma. Sangro normalmente. Todo mês. Acompanho a
lua. Meu humor oscila e fico tentada a assaltar a geladeira. Fazer sanduíches,
um refrigerante gelado, goiabada com queijo ou uma mera salada. Um calor
repentino queima o rosto e o corpo. Choro. Meus altos e baixos de humor
conflitam com a rotina. Larguei emprego, noivo e estabilidade no período
menstrual. Só não abandonei a depilação, que me garante a casta limpeza que
tanto desejo Em meu corpo tudo se mistura. Amor e paixão. Ambição e tradição. E
até mesmo a faxina e o desarrumar. Um amontoado de valores fajutos e outros
tantos sujos de pó. Poeira da estrada que já foi caminho da minha existência.
“Tudo acaba em pó”, lembra minha mãe. Assim não me interessa fazer coisa
alguma. Já sei que é tudo ilusão.
Ao
chegar em casa procuro Mefistófeles, um gato desordeiro, demoníaco e infiel.
Recortei-o de uma revista feminina que peguei no consultório da dentista. Era
gato de madame. Daqueles que ficam o tempo inteiro no colo, com cara emburrada,
exigindo atenção exclusiva em todos os momentos. Caí no seu jogo e dei-lhe
amor. Ele me deu arranhão. Bati com força em seu corpo e fiquei sozinha. O gato
fugiu. Na hora quase chorei, porém lembrei de um livro muito bom que estava
abandonado na estante. Passei o resto do dia lendo.
Nas últimas
noites felinos nasceram em minhas floreiras. Com miados curtos e baixos.
Bichanos que caçam e matam. Amordaçam suas presas, seduzem, encantam e acabam
com seu instinto. Depois, fazem cara de bonzinhos e florescem. Como floresceram
os meus. Ingenuamente. Como um simples desabrochar. Que lindo! Mefistófeles
deve estar com eles. Ao menos não viverá sozinho. Escutarei seus miados todas
as noites e adormecerei. E para os menos avisados: não há escapatória. Caso
você tenha sido hipnotizado por olhos tão cruéis, a mansidão tomará conta de
seus dias. Suas noites serão eternas fugas. Seu corpo, comandado pelo desejo,
não mais sossegará e você se tornará prisioneiro. De olhos. Bocas. Secreções.
Gemidos. Você gritará a todo instante e em todos os cantos. Por sexo. Por mãos.
Por órgãos. De mentira ou reais. Não mais haverá sossego. Sua cama será quente
como seus pensamentos mais secretos, omitidos ao próprio diário.
Então
você encontrará um homem. Nada saberá sobre seu passado, presente ou futuro.
Esse homem virá para fazê-la gozar e nada mais. Ele mal olhará em seus olhos.
Tocará seus braços, beijará suas mãos e seu pescoço. Suas mãos percorrerão sua
barriga. Enlaçarão sua cintura. Excitarão seus seios. Sua boca beijará a boca
dele. Sua língua procurará a língua dele. Suas salivas trocadas, combinadas,
complementadas. Suas reações serão sem seqüência, sem comando, sem luz. Tudo
será escuro e somente esse homem será luz. Você deverá tê-lo, por mínimos
instantes, para salvar-se. E então, nada importará. Nem o daqui a pouco. Nem as
conseqüências. Nem os horários previstos. Ou você salva-se ou você padecerá. De
marasmo desapaixonado.
Também
seu amor dirá boa-noite. Pedirá um beijo. Ele dirá rendas em seu ouvido. Pedirá
um voto de confiança. Uma noite para amar. Você poderá escolher: tornar-se
refém de prazeres por vontade própria ou entregar-se a um só amor. Nada mais
importará. Ninguém ousará perguntar sobre suas escolhas. E então virá a grande
descoberta: a liberdade do amar e ser amada. De você. Por você. Para você. Tão simples
como pinçar os pêlos supérfluos. Desnecessários na arte de amar.
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