Criação coletiva turma
Trabalho do Ator 2016 – finalização Patrícia Viale
Setembro 2016
Vento nervoso lá fora.
Janelas batem.
O açougueiro Fabiano
entra em cena. Senta-se junto a uma mesa, onde tem uma máquina de escrever. Ao
lado uma faca afiada. Ele fala em voz alta e datilografa. Um espírito está
sentado próximo dele. Várias facas estão espalhadas pelo cenário.
Fabiano: Desde criança
escuto histórias de causar medo. Meu avô era o homem que contava estas histórias.
Contava e escrevia. Dizia que eu precisava saber o que acontecia além dos meus
olhos. Algumas destas histórias ele tinha testemunhado. Outras ele tinha
escutado. Eram histórias de terror, de amores destruídos num pequeno vilarejo,
como o nosso. Um vilarejo onde o vento baixava a cabeça de todos. E cabeças
baixas deixavam de pensar, apertavam corações e sufocavam vidas. A que mais me
impressionou era a do enforcado Demétrio.
Márcia, filha de Fabiano,
entra em cena. Dois espíritos entram com ela. Fabiano tem os olhos
constantemente arregalados, como se estivesse sempre em alerta.
Márcia: Pai, olha estas
facas todas espalhadas... isto é perigoso.
Fabiano: Sou um
açougueiro, Márcia.
Márcia: Pai, escrevendo
aquelas histórias?
Fabiano: Sim, filha.
Preciso deixar estas histórias registradas. Isto é necessário e importante.
Márcia: Por que pai?
Fabiano: Para que todos
saibam o que aconteceu.
Márcia: O que aconteceu?
Fabiano olha para a filha
e fica mudo.
Márcia: O senhor é muito
misterioso. (a filha beija o pai no rosto e os espíritos encostam suas mãos
nele e Fabiano sente calafrios). Às vezes sinto medo deste mistério que vem do
senhor. Vou sair. Volto logo.
Márcia saí de cena. E
todos os espíritos saem com ela.
Fabiano sente-se mal, mas
continua datilografando.
Fabiano: Voltando à
Demétrio. Ele era um pobre coitado. Bebia demais, vivia de menos, mal quisto
por todos no vilarejo por causa da bebida. Quando estava bêbado falava mal dos
outros. Se metia em brigas de facas. Não fazia por mal. Como eu disse, o
problema dele era a bebida mesmo. Falava muito da família Soares Albuquerque. Era
inimigo da família nobre. Ninguém entendia a obsessão que ele tinha por aquela
família. Conta-se que trabalhou muito tempo como jardineiro na grande casa. Teria
conhecido Eleanor Soares Albuquerque quando mocinha. Eleanor era uma nobre
destemida e terrível mulher que mandava matar quando se sentia insatisfeita. Uma
linda moça, que implicava com as escravas bonitas. Não admitia que mulher
alguma chamasse mais atenção que ela. Suspeita-se que Demétrio tenha se
enforcado após uma confusão na mansão dos Soares Albuquerque. A tal árvore do
enforcado ficava encravada numa curva. Contam os antigos que ele se enforcou
pronunciando o nome de Eleanor. Meu avô confirmou esta informação numa carta.
Escreveu assim: “A mulher mais radiante, a mais bela, a mais odiada, Eleanor”. Quando
criança eu passava por aquela curva quase todas as noites. Pensava em Demétrio.
À meia noite, o espírito do enforcado brilhava por entre aquela vegetação. Diziam
que este brilho todo era o amor que ele tinha por Eleanor.
Rosangela, mulher de
Fabiano, entra em cena. Dois espíritos entram com ela. Rosangela é uma mulher
de postura corcunda, rosto triste, aparência de cansada. Não reclama da vida com
palavras, mas com o corpo. Rosangela está chegando do trabalho. Venta muito na
rua. Entra toda descabelada, arrumando o cabelo.
Rosangela: Fabiano, ainda
aí?
Fabiano se assusta.
Fabiano: Mulher, não
entre assim. Me assustou.
Rosangela: Cheguei faz
pouco. Tem um vento nervoso hoje. E para completar aquela casa estava um caos
hoje.
Fabiano: Por que?
Rosangela: Dona Eleanor
acha que é dona de todas as vidas. Hoje todos foram mal tratados porque ela
estava de mal humor. A mulher tinha perdido uma maldita blusa de renda e
descontou em todo mundo.
Fabiano: E acharam a
blusa?
Rosangela: Não. Eu
desconfio de que a blusa está no quarto do amante.
Fabiano: Amante?
Rosangela: Sim, este é o
comentário entre os empregados. De que ela está tendo um caso com o próprio
sobrinho, Gustavo. Márcia não sabe da história. Quero ver quando descobrir.
Fabiano: Isto vai feder.
É melhor não se meter. Márcia foi avisada que este rapaz não presta.
Rosangela: Vai feder
mesmo. E vai sobrar para todo mundo. Mas eu não vou fazer nada. Aquela mulher é
louca e ruim. Já jantou?
Rosangela tira uma faca
da bolsa.
Fabiano fica olhando a
mulher guardar a faca, mas não fala sobre o assunto. Apenas responde a pergunta
feita por ela.
Fabiano: Já.
Rosangela: Comi as sobras
de lá. Vou me deitar. Tô cansada, aquela louca nos tira o couro. Não demora
para deitar.
Rosangela dá um beijo na
testa de Fabiano e saí. Os espíritos tocam Fabiano, que sente calafrios. Fabiano
continua escrevendo.
Fabiano: Ainda sobre
Demétrio. O espírito dele brilhava à meia noite e pedia ajuda. Ninguém passava
pela curva neste horário, somente os descrentes. E se ele se aproximasse para
contar algo? Como ajudar um espírito, se perguntavam todos?
Fabiano fica olhando para
a folha.
Fabiano: E se Eleanor
estiver tendo um caso com o próprio sobrinho? Se for verdade, será um escândalo
e minha filha ficará arrasada.
Fabiano olha para a folha
e a tira da máquina. Coloca-a dentro de uma pasta, onde guarda todos os textos.
E saí de cena falando consigo mesmo.
Fabiano: Vou me deitar.
Amanhã chega uma carga nova de carne. Vou ter que matar sem intervalo para dar
conta.
Os quatro espíritos que
estavam com Márcia e Rosangela entram e se juntam a ele nesta última fala. Saem
todos.
Durante a cena que
Fabiano fica sozinho, o vento continua lá fora e as janelas batem
constantemente.
O palco escurece para
mostrar que uma noite passou.
Entram Rosangela, Márcia,
Fabiano e os quatro espíritos. Os quatro espíritos se provocam, se empurram,
parecem sugar os personagens. Rosangela arruma a mesa do café da manhã. Márcia
fica olhando as unhas e Fabiano olha para frente, com um olhar de quem está se
perdendo. Um espírito sussurra no seu ouvido coisas que não se entende.
Márcia: Estranho! Sonhei
com borboletas negras esta noite.
Rosangela e Fabiano se
olham.
Márcia: Meu quarto era
tomado de borboletas negras e elas voavam pela casa toda.
Rosangela: Isto não é
sonho, é pesadelo. Fica quieta e toma o teu café. Borboleta negra é mau agouro.
Márcia fica constrangida
e cala-se. Volta-se para Fabiano.
Márcia: Pai, é verdade
que a dona Eleanor mandou tirar os olhos de uma escrava, só porque a mulher era
bonita demais?
Fabiano olha assustado
para a filha.
Fabiano: Como você sabe
desta história?
Márcia: Ela conta para
todo mundo. Gustavo me disse que ela sente orgulho disto.
Rosangela: Como se pode
sentir orgulho de tamanha maldade?
Márcia: Mas se a escrava
aprontou bem que ela merecia. Escrava é escrava e dona Eleanor é dona Eleanor.
Existe uma grande diferença.
Um espírito rodopia ao
redor de Márcia comemorando os maus pensamentos da menina.
Márcia: Eu acho ela o
máximo! Uma mulher de classe. Muito distinta, ambiciosa. Tudo que ela quer, ela
consegue. Como não admirar alguém assim?
Rosangela: Você está
escolhendo muito mal suas referências e suas admirações. Você não tem noção de
quem é esta bruxa.
Márcia: Mãe! Você ta
falando da tia do meu namorado! Ela dá tudo para ele. Gustavo é rico, lindo e
poderoso graças a ela.
Fabiano: E o que mais
você sabe sobre ela?
Márcia: Como assim?
Fabiano: Sabe algo sobre
o passado dela? Sabe o que ela faz para ser tão rica? Márcia, você sabe com quem
ela se deita?
Rosangela: Fabiano, cale
a boca!
Márcia fica surpresa com
a reação da mãe.
Rosangela e Fabiano se
olham assustados com a quase confissão que provocaram.
Márcia olha para os dois:
Mãe! Pai! O que está acontecendo? Será que vocês querem me contar algo?
Rosangela: Não Márcia.
Não queremos te contar nada. Fique bem. Teu pai está com a cabeça cheia destas
histórias de espíritos. É só isto.
Márcia: Vou sair. Não me
esperem para almoçar. Irei encontrar Gustavo.
Rosangela e Fabiano tomam
café da manhã. Rosangela com o olhar baixo, inferiorizado. Fabiano com os olhos
arregalados, como se estivesse sendo perseguido por algo ou alguém.
Fabiano: Mulher, você não
sente algo estranho?
Rosangela: Não.
Fabiano: Tem certeza?
Rosangela: Tenho.
Escrever aquelas histórias tá te fazendo mal. Você fica vendo assombração por
toda parte. Te corrige homem. Tenho que trabalhar. Coloca a louça na pia. E
nada de abrir a boca sobre Eleanor e Gustavo. Entendeu?
Fabiano: Márcia é nossa
filha. Ela deveria saber. Isto é injusto com ela.
Rosangela: Ela escolheu
esta gente. Não podemos fazer nada por ela.
Fabiano: E sobre o resto?
Rosangela fica
transtornada e pega uma faca. Aperta o cabo da mesma na mão e vira-se para
Fabiano.
Rosangela: Se você contar
algo para ela, ou qualquer outra pessoa, eu juro que te mato. Isto é assunto
meu. Você jurou não se meter.
Fabiano: Calma mulher!
Não vou falar nada. Só acho que este assunto está te consumindo.
Rosangela (transtornada,
grita): Este assunto é meu! Não te mete.
Rosangela saí e os
espíritos saem com ela.
Fabiano fica sozinho em
cena.
A luz apaga. Fabiano saí
do palco. Quando acende Márcia e Gustavo estão em cena.
Márcia abraça Gustavo:
Que saudades!
Gustavo repele o abraço: Será?
Márcia: Por que você me
trata assim Gustavo?
Gustavo: Porque não
acredito que você goste de mim.
Márcia: Como assim?
Gustavo: Isto mesmo que
você ouviu. Você não gosta de mim.
Márcia: Eu amo você
Gustavo. Quero casar com você. Quantas vezes disse isto para você?
Gustavo: Dizer é fácil.
Quero ver dar prova.
Márcia: Prova?
Gustavo: Sim, uma prova
deste amor todo.
Márcia ficou pensativa.
Márcia: O que seria uma
prova de amor para você?
Gustavo: Algo muito
forte. Algo bem difícil. Algo bem amor. Algo como... matar seus pais.
Márcia: O que?
Dois espíritos rondam o
casal.
Gustavo: Sim, você me ama
tanto que tem coragem de matar seus pais. Não é uma grande prova de amor?
Márcia: Isto é loucura!
Gustavo: Por que? Seus
pais estão velhos, não são ambiciosos. Não farão falta alguma no mundo.
Márcia: Eu não acredito
que você está falando isto.
Gustavo: Ou isto ou me
esqueça. Vou te dar um tempo para pensar. Avalia a situação e depois
conversamos. (Gustavo toca no braço de Márcia, puxa ela pela cintura para
beija-la).
Márcia (repelindo
Gustavo): Eu vou embora Gustavo. Acho melhor você pensar bem sobre o que acaba
de me propor. Isto não é proposta, é uma total loucura.
Gustavo: Você é que
precisa pensar Márcia. Esta é a condição para ficar comigo.
Márcia: O quê?
Gustavo saí, com os
espíritos atrás dele comemorando, e manda beijinhos para ela, com uma cara
sarcástica. Gustavo sabe que Márcia ficará sofrendo e isto provoca prazer.
Márcia saí de cena.
A luz apaga. Quando
acende Gustavo está sentado numa cadeira. Entra Eleanor Soares Albuquerque, tia
de Gustavo. Ela é soberana, anda de cabeça erguida. Mexe as mãos constantemente
e não abaixa a cabeça. No vestido dela tem a estampa de borboletas negras. Três
espíritos entram em cena e se movimentam enquanto eles falam.
Eleanor: O que foi
Gustavo? Parece aborrecido.
Gustavo: É Márcia.
Eleanor: Aquela pobre.
Gustavo: Eu até gosto
dela tia, mas ela me entedia. Fica só falando em amor, em mimimi. Eu preciso de
emoções fortes. Pedi uma prova de amor hoje e ela deu prá trás.
Eleanor: Interessante. Qual
foi a prova de amor pedida? (ela acaricia os cabelos dele).
Gustavo (inquieto,
excitado): Pedi que ela matasse os pais dela.
Eleanor (olha o sobrinho
de maneira surpresa): Ambicioso você. Gosto disto. E o que ela disse?
Gustavo (chateado): Que
era loucura da minha parte.
Eleanor: Bem se vê que
ela não é mulher para você. Nada determinada. Pensa pequeno. Por amor se faz
loucuras. Eu mesma já fiz muitas. Loucuras são muito bem vindas nesta vida
repleta de tédio.
Gustavo: Como a escrava
que você mandou tirar os olhos? (Gustavo pega Eleanor pela cintura).
Eleanor: Sim, é verdade.
A negrinha olhava para o seu tio com olhos de desejo. (Gustavo segura a cintura
dela por trás e Eleanor acaricia o rosto dele enquanto fala sobre a escrava). Era
um fogo louco. Seu tio ficava possuído, corria atrás daquela vadia. Virava um
animal. Presenciei cenas absurdas. Percebi que em pouco tempo seu tio
enlouqueceria e destruiria toda a família. E isto eu não poderia aceitar, não é
mesmo? Então mandei cavar dois buracos na cara daquela inútil. Parece que ela
morreu tempos depois. Bem feito!
Gustavo: Admiro você,
minha tia. (Gustavo beija Eleanor no pescoço) Não leva desaforo para casa, luta
pela sua família.
Eleanor (olha Gustavo de
frente, olho no olho): Gustavo, a nossa família é tudo. Somos a nobreza deste
lugar fétido. Somos os guardiões dos valores e das tradições. Não podemos nos
rebaixar e muito menos deixar esta gentalha mudar a ordem das coisas. Estas
pessoas são ignorantes, precisam de nós como líderes. Entre esta gente e um
porco eu prefiro um porco assado no jantar.
Gustavo: Sim, tia.
Eleanor faz tom de
manhosa: Na verdade, eu gostaria que você se afastasse desta menina, Gustavo.
Ela é uma pobre ninguém. Pode até te dar filhos defeituosos. Imagina, filha de
um açougueiro e uma governanta! O que pode sair desta junção? Sinceramente,
você não tem medo de contrair uma doença?
Gustavo observa a tia e
dá uma risadinha.
Gustavo: É mais fácil eu
contaminar ela.
Eleanor com voz determinada:
Mas, pensando melhor, se ela te der esta prova de amor... Ah! Daí ela se
mostrará uma possível mulher de estirpe, de grande valor. Alguém que até merece
estar ao nosso lado. Poderemos orientar a mocinha a ser um ser considerável. Tenho
algo para te dar que ajudará neste plano.
Os dois se olham com
cumplicidade e Eleanor pega na mão de Gustavo.
Eleanor: Já ouviu falar
em ricina? Sem antídoto meu querido. Sem solução. Morte certa em poucos
instantes.
Os dois saem de cena.
Márcia está em casa.
Encontra o pai com o avental de açougueiro todo sujo na sala.
Márcia: Pai, olha a
sujeira deste avental. A mãe vai brigar com o senhor. Tem pingo de sangue por
tudo.
Fabiano está acompanhado
de um espírito. Fabiano tem uma faca na mão. O olhar dele é perplexo. Como se
tivesse recém matado alguém.
Fabiano fala brabo: O que
é menina? Me deixa em paz. Eu estava trabalhando.
Márcia: O senhor nunca
falou assim comigo!
Fabiano: Você me deixa
nervoso! Parece que não sabe que meu trabalho é matar.
Márcia coloca as mãos no
rosto e saí chorando.
Fabiano saí de cena pelo
outro lado. O espírito junto.
Márcia entra em cena e
fica num cantinho. Um espírito entra junto e fica acariciando a cabeça dela.
Márcia: Eu amo Gustavo,
mas não posso matar meu pai. Mesmo meu pai sendo aquele homem bruto, eu não
tenho coragem de matar ele. Tenho que falar com Gustavo, fazer ele mudar de
ideia.
Márcia saí para encontrar
Gustavo. O espírito rasteja atrás dela.
Márcia e Gustavo se
encontram. Dois espíritos juntos.
Gustavo: Então, pensou na
prova de amor?
Márcia: Pensei. Não sei
como fazer isto. Como irei matar meus pais? Você tem que mudar de ideia.
Gustavo fala com jeito
apaixonado: Por amor a mim. Você não faria isto por amor a mim?
Márcia se mostra confusa.
Os espíritos a abraçam.
Márcia: Vamos nos casar
em seguida? Você jura? Promete que não me deixará?
Gustavo: Sim, logo após o
fato nos casaremos. Com festa, lua de mel. Com tudo que uma linda noiva merece.
Márcia: Eu nunca matei.
Não sei como fazer isto Gustavo.
Gustavo tira um saquinho
do bolso e entrega para Márcia.
Márcia: O que é isto?
Gustavo: Aqui tem uma boa
dose de veneno. Ricina. Cerca de sessenta microgramas neste pacotinho. O
suficiente para matar os dois. O mais letal veneno de origem vegetal, a ricina
é uma proteína isolada das sementes de mamona. É só colocar numa bebida, de
sabor forte, mexer e pronto. Em instantes teremos um festival de diarréia,
vômito com sangue e logo mais os dois estarão mortos.
Márcia apavorada: Você
trata um assunto tão delicado como se fosse algo comum. Envenenar alguém não é
um assunto corriqueiro. Ao menos para mim não é.
Gustavo: Faz parte da
vida Márcia.
Márcia: Você mataria seus
pais?
Gustavo
pensa em Eleanor: Por amor a alguém, sim. Sempre. E não se preocupe, a dose é
alta. Será tudo rápido. Ou você prefere um corte no pescoço do seu pai? Você
sabia que se uma pessoa cortar a aorta num acidente vai morrer em segundos. No
entanto, se for uma artéria ou veia menor, o processo pode demorar horas e a
pessoa passará pelas diferentes fases de um choque hemorrágico. O que você
prefere? Consegue acertar a aorta de primeira? Posso arranjar uma boa faca.
Márcia
fica olhando espantada para Gustavo, que está balançando o saquinho na mão.
Gustavo:
Pensa Márcia! Minutos depois da ingestão desta dose
começarão os vômitos e a diarréia. Em casos de intoxicação aguda, surgem lesões
nos intestinos, fígado e boca. O envenenamento pode levar à falência renal e
tem efeitos perversos no sistema nervoso. (Gustavo ri muito com a própria
explicação) A pessoa se torna irritada, paranóica, sofre de tremores, fala e
age como louca. Viu como eu sei tudo
sobre veneno? O que acha? Prefere sangue escorrendo ou um pouco de vômito?
Márcia chora baixinho e
pega o saquinho.
Gustavo abraça Márcia. Os
espíritos abraçam os dois.
Gustavo: Pare de ter medo
Márcia. Agora vá e faça a sua parte. Eles morrem. Você cumpre o tempo
necessário do luto e nos casaremos.
Márcia se despede de Gustavo,
guarda o saquinho e saí. Gustavo saí para o outro lado. Os espíritos se separam
e acompanham eles.
Márcia janta com o pai e
a mãe. A mãe levanta e tira a louça suja para colocar na pia.
Rosangela: Márcia, coloca
água para ferver prá fazer o café.
Márcia levanta da cadeira
e treme. Ela está nervosa. Coloca a mão no bolso e sente o saquinho com o
veneno.
Márcia: Sim, mãe.
Márcia olha fixamente
para o pai. Como uma despedida. O pai olha para ela. Ela corre para aquecer a
água. Rosangela sai de cena dizendo que vai ao banheiro. Fabiano fica sozinho
na mesa e Márcia fazendo o café. Ela coloca o veneno na jarra de café, pega os
xícaras, o açúcar e leva tudo para a mesa.
Fabiano arruma seus papéis
na mesa para continuar escrevendo a história. Márcia o observa.
Fabiano: Estou
descobrindo coisas terríveis sobre a família do seu namorado, sabia Márcia?
Márcia fica assustada.
Márcia: Tipo o que, pai?
Fabiano: A tia do seu
namorado, Eleanor Soares Albuquerque parece que teve uma criança fora do
casamento.
Márcia: Como assim?
Fabiano: Encontrei
anotações de meu avô contando esta história. Demétrio, o enforcado, era
jardineiro na mansão, bem na época em que Eleanor era uma mocinha. Dias depois
que ele se enforcou, Eleanor foi mandada para a casa de uma tia na capital.
Voltou um ano depois, casada, com uma escrava que tinha uma filha branca. Não
parece estranho? Não parece existir uma relação entre Eleanor e o enforcado?
Márcia fica nervosa e
esbarra numa cadeira. Ela se vira para servir o café.
Márcia: Quer café pai?
Fabiano: Sim, eu quero.
O pai toma a xícara de
café que Márcia serve. Rosangela continua no banheiro. Márcia fica de costas
para o pai. Não consegue olhar para o pai. O pai está escrevendo suas histórias
e quando começa a se sentir mal chama por Rosangela. Rosangela vem num passo
acelerado. Fabiano olha para Rosangela e entrega a pasta com as histórias para
ela. Fabiano está asfixiado, mas consegue falar algumas palavras.
Fabiano: Foi ela
Rosangela. Foi Eleanor.
Após falar Fabiano caí no
chão, rasteja e morre. Rosangela segura a cabeça do marido e olha aflita para
ele. Ela grita por Márcia. Márcia entra em cena transtornada e olha apavorada
para a mãe segurando a cabeça do pai.
A luz apaga e todos saem
de cena. O palco fica vazio.
A luz acende. Rosangela entra.
Muito desfigurada. Atravessa o palco se lamentando. Ela se arruma para
trabalhar.
Rosangela: Por que? Por
que a vida tomou meu marido? O que fiz para viver sozinha. Só me resta
trabalhar e continuar esta vida medíocre. Abandonada, esquecida, renegada a ser
uma empregada. É isto mesmo?
Rosangela pega a bolsa. Continua
sendo uma mulher obediente e servil. Mas percebe-se que está guardando raiva. Os
dias passam e Rosangela calada aguenta as ofensas de Eleanor. Márcia, tomada de
sentimento de culpa por ter matado o pai, afasta-se da mãe e faz todas as
vontades de Eleanor.
Em cena, Gustavo, Márcia
e Eleanor estão tomando café. Eleanor chama Rosangela. Ela chega. Os espíritos
se movimentam na cena.
Rosangela, de cabeça
baixa, pergunta: O que a senhora deseja?
Eleanor com um sorrisinho
derruba café no chão e diz: Limpe!
Rosangela se abaixa e
limpa com um pano. Eleanor coloca os pés nela e a joga ao chão. Gustavo e
Márcia (constrangida) riem. Eleanor, com ar superior, observa a humilhação de
Rosangela, que limpa o chão de joelhos. Rosangela saí do meio deles e fica
atrás dos sofás, onde eles estão sentados. Rosangela pega uma faca entre
talheres que ficaram sobre a mesa e degola primeiro Gustavo. Gustavo se debate
no chão e morre.
Rosangela olha para
Márcia e diz: Vá para o inferno filha sem coração! Eu sei que foi você quem
matou Fabiano. E matou para atender um desejo desta mulher injusta (aponta para
Eleanor, que está indiferente).
Rosangela olha a filha
nos olhos e passa a faca no seu pescoço. Márcia caí e morre.
Com a faca na mão olha
para Eleanor e diz: Você abusou de tanta gente. Você acabou com várias vidas. E
para quê? Por que? Para sentir prazer. Um prazer sórdido e mesquinho.
Eleanor observa Rosangela
sem alterar a fisionomia de superioridade. Ela levanta do sofá e Rosangela a
empurra.
Rosangela: Fica aí
monstra. Eu matei minha filha, tá achando que vou te deixar quieta?
Eleanor não baixa a
guarda e fica encarando Rosangela.
Rosangela: É bom torturar
os outros?
Eleanor: Eu nunca
torturei os outros. Apenas dei o que mereciam.
Rosangela: Os outros
mereciam crueldade?
Eleanor: Você tem um
conceito para crueldade, que certamente não é o mesmo que o meu.
Rosangela aproxima a faca
do rosto de Eleanor: O que é crueldade para você?
Eleanor: Você se achar no
mesmo nível que eu é crueldade. Uma mulher estúpida se igualar ao meu nível e
se achando no direito de colocar uma faca no meu rosto. Isto é crueldade.
Rosangela: Pois eu acho
que isto é justiça.
E Rosangela pica a orelha
de Eleanor. Eleanor coloca a mão e saí do sofá. Passa a mão na orelha que
sangra, mas retoma a postura.
Eleanor: É o seu melhor
vadia?
Rosangela: Não. Este é o
meu deslize. Olhei para os seus olhos e tive um momento de ternura.
Eleanor: Ternura? Você? Acaba
de matar sua filha e meu sobrinho e vem falar em ternura.
Rosangela: Eu não matei
seu sobrinho. Eu matei seu amante. E quanto a minha filha eu somente antecipei
o encontro dela com o pai, que deve estar cheio de saudades da filha querida e
assassina.
Rosangela e Eleanor se
observam. Rosangela continua com a faca apontada para Eleanor.
Eleanor: Deveríamos
conversar. Sentar e conversar.
Rosangela: Claro. Na
poltrona ou no sofá?
Eleanor: Onde achar
melhor.
Rosangela: No sofá. Lado
a lado. Como convém a duas pessoas que deveriam ter alguma intimidade.
As duas sentam-se no
sofá.
Eleanor: Desculpe, mas
por que eu deveria ter alguma intimidade com você?
Rosangela: Você não sabe?
Eleanor: Se estou
perguntando é porque não sei. Ou acha que sou uma idiota como você?
Rosangela: Não, você não
é uma idiota.
As duas se observam. A
faca continua apontada para Eleanor.
Eleanor: Se você não vai
falar gostaria de pedir que se retirasse. Tenho muito que arrumar nesta sala.
Rosangela: Só nesta sala?
Eleanor: Eu não entendo
suas charadas. Quem sabe você opta por ser mais direta.
Rosangela: Mais direta?
Esta é a sua vontade madame?
Eleanor: Sim, admiro
pessoas práticas e objetivas.
Rosangela: Não seja por
isto.
Rosangela crava a faca no pulmão de Eleanor.
Eleanor não consegue gritar. Rosangela retira a faca rapidamente do
corpo, para que o sangue comece a esvair e lentamente Eleanor irá morrer.
Rosangela: Dona Eleanor, pelos meus cálculos, temos alguns minutos
juntas e você não poderá gritar, muito menos fugir. Teremos o máximo de nossa
intimidade. Uma intimidade que nos foi roubada, não é?
Eleanor está sofrendo e olhando para Rosangela.
Rosangela: Uma filha branca criada por uma escrava negra. Uma
intimidação para trabalhar nesta casa assombrada. Um pai enforcado. O que mais
você tem para me contar, mamãe?
E Rosangela esfaqueia Eleanor várias vezes.
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