segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

A Debulha



Por Patrícia Soares Viale – julho/2003 – Barragem do Salto/RS


Ela estava sentada na espreguiçadeira próxima a um pinheiro. Daqueles de galhos feitos de grinfas. Aproveitava o sol de inverno um tanto rarefeito, mas intenso. Fechava os olhos e parecia cochilar, somente os pés movimentavam-se devagar, um sobre o outro, como se estivessem travando conhecimento. Olá, como vai? Estou bem e você? Abria os olhos e examinava o cenário a sua frente. Céu azul safira, nenhuma nuvem alta ou baixa e visão ausente mais uma vez. Dormia ou somente fingia dormir.
Se ele telefonar ainda hoje juro que esqueço tudo e voltamos a ficar bem mas precisa ser iniciativa dele senão nem pensar ora como pode isso querer tudo do jeito dele na hora que ele quer estou cansada de tudo só esse sol mesmo para me fazer sorrir e acreditar que os acontecimentos podem melhorar como que as coisas podem melhorar se ele não cede se ele não quer entender as minhas escolhas como alguém pode me explicar claro que não minha psiquiatra já me disse isso tantas vezes burra sou eu que não quero me conscientizar dessa porcaria toda por que alguns nascem com mais facilidade para a vida e outros como eu só se arrebentam na verdade talvez eu sofra de algum complexo e o mundo a todo momento quisesse me ver pelas costas não eu exijo que parem esses pensamentos assim preciso animar o olhar e encarar a flora fauna de frente tirar forças desse astro que brilha e levantar desta cadeira pular carregar a vida nos braços embalar meus sonhos e acreditar cada vez mais que eu posso ainda serei feliz com ele se ele não falar o que me custa ligar eu posso fazer isso posso sacudir esse relacionamento por que ficar esperando que ele dê o primeiro passo balance as sobrancelhas apóie-se em suas próprias pernas pegue o telefone diga que ama ele que também quer ficar junto e que tudo irá se ajeitar vamos erga-se e faça algo agora e urgente.
Ela abandonou a cadeira e caminhou rapidamente para dentro de casa. Um passo mais apressado que o outro. Esboçava um sorriso. A espreguiçadeira vazia experimentou esquentar-se com o restinho de sol. Um barulho, não muito fraco, mas até bem forte para alguns ouvidos, poderia ter impressionado-a, mas ela não ouviu. Estava ao telefone. No pinheiro araucária, protegido por lei, uma pinha debulhou e pinhões caíram na grama queimada pelo frio dos dias anteriores.


quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Vida longa à Serena


Serena é o nome dela. Quem é Serena, perguntarão alguns. Outros não terão tempo para saber ou sequer irão se interessar. Eu me interessei. Eu tive uma tarde de sábado todinha para ficar com Serena. E só posso dizer uma coisa: ela é a moça que já fui com vinte e poucos anos.


No auge dos meus quarenta e cinco anos, muito próxima dos 46, uma crise se instalou no meu olhar e no meu sentir. Meu olhar e minha pele cansaram, justo agora que minha cabeça está à mil e sem preguiça. Meu corpo já não é rápido, mas ainda não chega a ser lento. Roberto Bevilacqua, personagem do livro "Brava Serena", é um senhor de idade, que segue à risca as recomendações médicas, mantendo uma alimentação adequada e consumindo, regularmente, seus remédios. Ele decide viver o resto de  vida na Itália, em Roma, onde moram suas memórias. Chegar aos 40 é algo estranho. Nos deixa com um estranhamento nas entranhas. E eu deveria me identificar com Roberto. Mas eu não quis. Tive carinho por ele. E só. Chegar aos quarenta é conseguir escolher só o que se quer de verdade. Existe uma libertação grandiosa e uma saudade imensa nesta fase. Saudade da ousadia que já se teve e da paixão pela vida que habita os poros da nossa pele. Libertação por saber ser independente no pensar, no sentir e no agir.


Então o livro "Brava Serena", de Eduardo Krause chega neste momento de se redescobrir. Não estou mais me conhecendo, mas estou me refazendo. A cada instante. Porque não se conta mais dias e sim momento. E Serena vem serenando minhas indagações. Vem confirmando uma vida que já vivi e me fez plena para viver esta atual fase. Serena vem para me abraçar e apenas sorrir, porque chega um momento em que a vida não pede mais argumentos ou desculpas. A vida só pede que se viva. E nisto Serena é craque. Ela vive.



Final de temporada de verão é como as luzes do dias, que vão se transformando, sutilmente, como um piscar de olhos. É tempo de agradecer o calor que nos inundou e começar a se preparar para troca de estação. E ao fechar o livro a gente esquece de tudo: de Roma, de Roberto. Só fica Serena e sua paixão "bem resolvida" pela vida. Porque ela é intensa. Ela é real. Ela é somente ela. Se cada um de nós é singular nesta existência, por que insistimos em usar uniformes? Serena não usa.


Eduardo Krause "se passou" neste livro. "Se passou" num ótimo sentido. Ele diz para seus leitores que a literatura é SIM seu ofício maior. Ele reafirma para sua editora, a Dublinense, que não é mais uma aposta, mas uma CERTEZA. Ele dá a mão para Serena e diz para esta menina mulher que a vida é todinha dela.


O livro tem muita comida, muitos amores, muitas paisagens turísticas. E tudo isto nos cativa e nos encanta. Fico imaginando este livro sendo traduzido para o italiano e lançado em Roma. Quantas Serenas estariam no lançamento?


Lá eu não sei, mas aqui, em São Francisco de Paula, no dia 23 de fevereiro, eu tenho certeza de que muitas pessoas estarão, de coração aberto, para ouvirem as palavras inspiradoras de Krause e buscarem suas Serenas!



Pizza Literária de Verão, com os Escritores convidados Júlio Ricardo da Rosa e Eduardo Krause

Data: 23/02 – sábado
Horário: a partir das 19h
Convites à venda por 80 reais, por pessoa (dão direito às pizzas, pães, antepastos, água saborizada e vinhos).
Os livros dos escritores estarão à venda no evento, com valores promocionais.
Local: Boutique de Pizzas Viale (rua Alziro Torres Filho, 1579 lago São Bernardo – São Francisco de Paula) 
Telefone para informações e compra de convites: 54 99925.5761, com Patrícia Viale.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Por mais cidadã de segunda classe

2019 e ainda vivemos limitados por crenças e conceitos estipulados sabe-se lá por quem ou por quê. Ainda atendemos as expectativas alheias. Ainda esperamos a aprovação do outro. Buchi Emecheta, lá nos anos 60, disse que não queria viver assim. Se hoje é difícil, imagine numa época onde a mulher pouco era considerada. Era boa para arrumar a casa e criar os filhos. Mais que isto? Não se fazia necessário.


Buchi Emecheta é a escritora nigeriana de "Cidadã de Segunda Classe", livro publicado em português pela editora "phoda" Dublinense. Buchi Emecheta nasceu em 1944 na cidade yorubá de Lagos, na Nigéria, África, mas foi na terra natal de seus pais, Ibuza, onde ela passou boa parte da infância. 
Uma das paixões da menina era ouvir histórias dos mais velhos. Em Lagos, conheceu bons contadores, mas, para ela, a maneira igbo era diferente. Cresceu ouvindo a tia, a quem chamava de Grande Mãe – as contadoras, seguindo a tradição local, eram sempre mães de alguém. Buchi costumava sentar “por horas a seus pés, hipnotizada pela sua voz de transe”, deleitando-se com as proezas de seus ancestrais. As visitas a Ibuza, aliadas ao prazer e ao conhecimento obtidos com as narrativas, trouxeram a Emecheta a certeza de que seria, também, uma contadora de histórias.
E por falar em história, "Cidadã de Segunda Classe" conta a história de uma mulher africana (Adah) obstinada, que aprende a viver vivendo. O livro se divide em 13 capítulos e não é livro para ler numa sentada. É livro para ser degustado por capítulos, voltar nas páginas, assinalar trechos como "Estava com tanta fome que poderia ter comido suas entranhas" (página 157) Mas este não é um livro que se concentra em fomes e dores físicas. Este é um livro para se resgatar a fé na vida e em si mesmo. Reclamamos porque está calor. Reclamamos do frio. Nos queixamos o tempo todo, como se fossêmos vítimas reais. E as tais vítimas reais acalentam a vida como um presente. A vida real com acertos e desacertos. Buchi Emecheta escreve sobre esta vida.


Durante a infância, o irmão da escritora  privilegiado por ser menino, foi para a escola, enquanto Buchi ficou em casa. Imaginem separar os irmãos por sexo e benefícios. Meninas condenadas à ignorância. Meninos tendo direito a uma oportunidade na vida. Mais tarde, após diversos e insistentes pedidos, foi matriculada em uma escola missionária para meninas, onde aprendeu línguas nativas e o inglês – seu quarto idioma.
Apesar dessa conquista Buchi Emecheta viveu uma infância dura. No entanto, a pobreza e a subnutrição, que assolaram boa parte de seus anos de juventude, somadas à perda precoce de seu pai (tinha apenas oito anos a escritora), não lhe diminuíram a vontade de viver: um desejo intenso que nunca a abandonaria.


No capítulo "Aprendendo as Regras", Adah deu à luz ao terceiro filho, em um hospital londrino. Em meio às dores da recuperação de uma cesariana e a um auto questionamento sobre a decisão de voltar a viver ou não, Adah observa as outras mães em recuperação. Um mundo tão diferente, que ela sequer imaginava, com regras de vestuário e comportamentos numa maternidade pública. Mas o mais chocante foi ela perceber que existia outras relações entre um homem e uma mulher. Ali ela viu, através dos outros, o quê era carinho, preocupação, romantismo, zelo. "Adah não conseguia parar de chorar. Não queria parar porque poderia cair na tentação de contar a verdade a eles. Poderia cair na tentação de lhes contar que pela primeira vez na vida detestava ser quem era. Por que ela não podia ser amada como um indivíduo, do jeito que a mulher composta estava sendo amada, amada pelo que era, e não apenas por ser capaz de trabalhar e passar adiante o dinheiro, como um criança comportada? Por que ela não podia ser abençoada com um marido como o daquela mulher que tivera de esperar dezessete anos pela chegada do filhinho? O mundo parecia desigual, tão injusto. Algumas pessoas eram criadas com todas as coisas boas prontinhas à espera delas, outras apenas como enganos. Enganos de Deus" (página 167).

Em 1954, recebeu uma bolsa de estudos em uma escola de elite, em Lagos. Durante esse período, a mãe de Emecheta faleceu, e ela foi passada de um parente distante para outro. No período de recesso dos estudos, enquanto suas colegas voltavam para as confortáveis casas das famílias, ela permanecia no dormitório da escola, encontrando abrigo nos livros e na imaginação. A volta das férias era seu momento de brilhar, maravilhando as colegas com histórias sobre suas supostas aventuras.
Aos 11 anos, ela conheceu e se tornou noiva do estudante Sylvester Onwordi; aos 16, eles já estavam casados. Logo nos primeiros anos, nasceram dois filhos – chegariam a cinco no total. A família mudou-se para Londres, onde Onwordi entrou para a universidade.
Emecheta viveu um casamento infeliz e, não raro, abusivo e violento (sim, ela apanhou fisicamente e sofreu violência psicológica). Quando começou a escrever em seu tempo livre, chegando ao rascunho de um romance, viu Onwordi queimar os textos, consumido pelo sentimento de posse e totalmente ameaçado pela força de vontade da esposa e seu desejo de conquistar uma graduação. Buchi Emecheta estava decidida a se tornar escritora. Aos 22 anos, Buchi consumou o divórcio, no entanto, Onwordi renegou a paternidade. Sem dinheiro, em um país estranho e com seus cinco filhos para cuidar, manteve-se com obstinação e trabalhou em lugares como a Biblioteca de Londres, enquanto estudava à noite. Em 1974, estava graduada em Sociologia.


Em janeiro de 2017, aos 72 anos e debilitada pela demência, Emecheta faleceu. Sua obra expandiu as representações da mulher africana, ao redor do mundo, estabelecendo-a como uma das melhores contadoras de histórias de seu tempo. “Existem milhões de mulheres africanas que nunca deixam suas casas, nunca deixam seus vilarejos; esposas em vilarejos continuam na escravidão. Quanto aos meus livros, eles podem ser positivos, ou podem ser negativos. Mas eu acredito que se você cria uma heroína, seja africana ou europeia, com educação – não necessariamente com dinheiro, mas educação – ela ganha a confiança para poder lidar com o mundo moderno”.

Por que ler Buchi Emecheta? Porque buscamos o amor próprio a todo custo e isto não está certo. Eis uma escritora que precisa ser lida por meninas e meninos. Buchi nos mostra que se amar é ser leal a si mesmo, mesmo que o mundo desabe nas nossas cabeças. E um mundo desabado é uma chance ímpar de reconstruirmos um novo mundo.

Por que me tornei uma colagista

Em 2001 fiz um auto exílio na Suíça, em função de um casamento. Jornalista no Brasil, lá me descobri uma analfabeta. Além de precisar apre...