segunda-feira, 11 de março de 2019

Eva


por Patrícia Viale

Eva é beijada pelo pai. Acidente. Puro deslize. No cumprimento de Bom Natal, o pai abraça a filha e beija-a nos lábios. Eva estremece. Nos seus dez anos arrepia-se. O pai provavelmente não tem consciência do ocorrido. Está embriagado. Eva senta num canto da sala, com a boneca nova no colo. Muitas vezes a beija nos lábios. Tantas e tantas vezes. Inúmeras. Mais tarde Eva o pai abraçar a mãe e beija-la na boca. “É beijo de amor!”. E a menina agarra a boneca com os olhos fechados.
Meses depois Eva acompanha com entusiasmo a mudança que chega à casa 165. uma bonita moça entrando pela porta azul. Quando a moça olha Eva, essa faz cara de espanto e foge. Mas durante as semanas seguintes Eva ali perto pula corda em frente à janela, que tem o vidro sempre abaixado. Raras são as vezes que está levantado. Totalmente aberto. Um dia larga a corda e toca a campainha. A bela moça atende. Meu nome é Eva e o seu? Marina. Você quer pular corda? Ah, não, obrigada. Então podemos conversar? E Marinacom os ombros. Acho que podemos. Sobre o que você quer conversar? Sobre beijo de amor. Marina acha estranha a abordagem da menina, mas pressente que pode haver algo na inocência daquela criança e a convida para entrar. Eva entra e senta-se, rapidamente, em uma poltrona. As duas se olham com um torto silêncio no meio da sala. E então? Sei que você foi beijada. E como sabe? Toda mulher bonita recebe beijos de amor. E as que não são bonitas? Nunca conversei com elas. Mas o quê você quer saber? Você conta como foi seu beijo de amor e eu conto como foi o meu. Calei-me. Algum dia amei? E se nunca ganhei esse beijo de amor? A moça cruza as pernas como quem se prepara para um discurso. Passa as mãos pelos cabelos soltos e baixa os olhos. Você acha que Romeu beijou ardentemente Julieta? Não? Eu não sei! Você quer dizer que nunca foi beijada? Não, eu não disse isso! Então você foi beijada? Os olhos da menina eram ansiosos. Olhos de desejo para alguém tão jovem. E as mãos unidas como numa súplica. Orar para obter respostas. Assim ensinaram os pais. Os professores. E mal sabiam que muitas vezes as respostas não cabem às perguntas que temos. Por que pergunta? Porque todo amor precisa de um beijo.
Marina prefere silenciar e observar a menina. Eva coça o nariz e com a doce timidez dos poucos anos se levanta, aproxima-se e beija suavemente os lábios de Marina. Doce beijo. Rápido toque. Maltempo de criar castelos com torres e princesas apaixonadas. Mas com certeza, um beijo. Depois saí correndo, com as mãos na boca contendo o riso de quem fez uma travessura.

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