Patrícia Soares Viale
(“Ereto sobre as patas traseiras, o tamanduá
espera o inimigo e magoa bastante o adversário imprudente que se deixar
apanhar. Mas sua índole é antes timorata, foge do homem, porém, tão lentamente,
que a passo se acompanha o seu galope”)
Um tamanduá olha-me. Está
triste. Seu olhar pede ajuda. Parece dizer que de nada adianta viver se a
solidão continuar rondando sua existência. Fico perdida. Entre o agir e o
permitir. Permitir que, de tão só, o bichinho venha a morrer. O que posso fazer
por seu isolamento? O que posso fazer pela ausência de brilho em seu olhar?
Nada posso, pois sou o próprio tamanduá. Sou uma mulher ausente de sonhos e
vida. Sou um ser que busca encher-se de algo, mas nada sei. Procuro por um
abraço.
Calar-se como gente boa e
agir como gente do bem. Nada mais. Recordo uma confissão que fiz ao padre,
quando vivi minha primeira paixão platônica. Meu homem era alto e muito forte.
Dono de uma voz marcante. Um homem com confiança em seu próprio destino. Com um
desejo explícito de amar suas emoções e transforma-las em realidade.
Apaixonei-me por tal monstro sedutor. Lembro de suas feições. De seus gestos.
Lembro-me do seu jeito de beber leite e depois sorrir inocentemente, como um
bebê. Como fui feliz ao amar aquele homem, que nunca, sequer, soube de minha
existência. Mesmo sendo ignorada, jamais pensei em desistir da paixão. Talvez
fosse esse o segredo e o grande prazer. Acariciar-me escondida pensando nele.
Escrever cartas de amor sem nunca enviar. Viver à margem de tudo e de todos.
Como uma mera espectadora. Fui um acidente em minha própria vida. E permiti-me
esse deslize. Bela confissão. Ao padre. À alma feminina. Fui feliz em amar e
esconder-me. Descobri ter segredos e sentir vergonha por esses. Mas senti e vivi.
A cada passo daquele homem, eu estava lá. Registrando com meus momentos.
Acompanhando com meu silêncio. Totalmente muda e calada. Como manda a boa
etiqueta da amante perfeita.
Assim meu
homem teve uma amante quente. Carinhosa. Meiga. Erótica, desprovida de pudores.
Acordava sozinha, mas ouvindo sua música favorita. Tomando café da manhã à
dois. E a louça já não me incomodava. Para o almoço, ele ligava e dizia o quê
queria comer. Comida caseira. Grelhados. Apenas saladas. Ou então sanduíche e
sexo. Ele decidia e eu cumpria. Tudo muito simples para minha crença. E assim
fomos indo. Um ano. Um pouco mais. Meu homem era o suficiente para ficar de bem
com a vida. Quando chegava a hora do amor, amor fazíamos. Hora de conversar,
palavras eram trocadas. Momentos de cumplicidade e desconfiança. Sem
constrangimento. Sem censura. Sem regras.
E meu homem sequer notou
tanto romantismo. Tanta dedicação. Enfrentei todos os pontos de interrogação.
Enfrentar já bastava. O resto seria apenas complemento para a letra de uma música
qualquer. Optei por ter meu homem assim. Não o tive, como teve Carolina,
Márcia, Rosa ou Anelise. Mas ele foi meu e de uma maneira bonita. Foi como um
texto bem escrito. Programado, acompanhado de detalhes, poucas reticências. Fui
convincente quando muitas mulheres são apenas emotivas. Sem maiores
expectativas ou pensamentos em melhores resultados. Assim fica mais fácil
seduzir e até mesmo matar.
Mas na manhã passada acordei
assustada. Um pesadelo era o motivo. Corri ao banheiro. Lavei o rosto. Olhei-me
no espelho. Enxuguei-o e voltei para a cama. E o voltar foi doloroso. O
pesadelo parecia estar vivo. A cama desarrumada. E vazia. Eu estava sozinha.
Durante meses estive sozinha e não havia percebido. Durante todo esse tempo os
abraços eram falsos e os braços eram meus. No travesseiro, ao lado, nem um fio
de cabelo. Nenhum cheiro. Nada. Nada mais que um pouco de mim. E por isso
parecia menos.
No pesadelo eu estava dentro de uma roda. As pessoas,
que formavam a roda, giravam e riam. Esses monstros zombavam da minha cara. Uma
mulher gritava e chamava-me de tonta, burra. Outra corria até uma porta e
olhava pela fechadura. Voltava o rosto com ar malicioso e passava a língua nos
lábios. Todos me empurravam e riam. Batiam os pés no chão. Fugi da roda e fui
até a porta. Olhei pela fechadura. Vi meu homem nos braços de uma mulher. Nus.
Tocando-se. Ele amava-a como nunca fez comigo. E no pesadelo eu chorei. Chorei
tanto que as lágrimas criaram um lago. E se eu não tivesse acordado, certamente
morreria afogada.
Liguei para meu trabalho e
avisei que não iria. Dor de dente. Que outra dor eu poderia falar? Peguei
dinheiro e fui à livraria. Comprei livros de bichos, revistas femininas,
tesoura, cola e cartolina. Passei no supermercado. Comprei álcool e fósforo.
Voltei para casa. Recortei homens bonitos e mulheres muito lindas. Nos livros
de bichinhos recortei todos os tamanduás que encontrei. Cinco ao todo. Colei
todas as figuras na cartolina. Um tamanduá. Um homem. Uma mulher. Segui a
seqüência até as gravuras terminarem. Procurei uma tigela na cozinha. Tigela de
barro. Despejei álcool e risquei o fósforo. Fogo. De frente para o cartaz
prometi não ser mais minha própria ausência. Amaldiçoei aquele e todos os
homens fantasiosos. Julguei meus medos. E perdoei o tamanduá por insistir
naquele abraço. Eu queria. Eu desejava um abraço, mas uma recaída poderia ser
fatal. Joguei todos na fogueira e dei por encerrada a caça às bruxas.
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