sábado, 2 de outubro de 2021

Equilíbrio

texto escrito em 21 dezembro 2001 - Suíça Está tudo congelado e já é noite. Tudo parado. Ninguém consegue falar com outro ninguém. Estamos todos isolados. Completamente isolados. O carro da polícia passa rápido pela rua com a sirena sooando. Que medo sirene de polícia! Pela janela vejo as pessoas que caminham rápido, olhando para o chão. Estou sozinho. Ninguém ligou. Ninguém procurou. E sequer conheço ninguém. Como a vida fica confusa quando não conhecemos ninguém. Fica ainda mais difícil viver depois de ser assaltado na rua e ter, justamente, sua bengala roubada. Foi ontem, antes de tudo congelar. Não era bonita, mas sim charmosa. Talvez por isso o larápio tenha levado-a. Minha amiga de passeios. Meu equilíbrio. Minha segurança. Sem minha bengala nada sou. Já me levaram quase tudo nessa vida. A morte levou Eunice. Um carro levou Banzé. A vida levou meus filhos e meus netos. E agora um estranho levou minha bengala. O que mais me resta? Nada mais tenho. E nada mais posso esperar, a não ser a morte, pois quando se começa a sentir aquela dor diária no peito, aquela porcaria que sufoca e nos faz chorar... que futuro eu posso ter? E sem Eunice, o que posso querer? Viajar não teria graça. Divertir-se perdeu o sentido. E amar já é impossível. O que faz a falta daquela mulher na minha vida... Depois foram os filhos: independentes, cheios de sonhos e amantes de tantas modernidades. O que podem querer com um velho que se veste com roupas gastas e velhas, que compra pirulitos para as crianças e até mesmo escreve cartas para um amigo distante. Estou atrasado, obsoleto. Sou repugnante, feio e arcaico. Além disso, de que serve um avô na vida dos netos de hoje? Então adotei Banzé, um vira-lata muito simpático. Levei-o para casa e tratei-o como um filho de quatro patas. Leite morno pela manhã, um bom pedaço de carne ao meio-dia, passeio e pêlo escovado à tarde. À noite outro copo de leite morno. E durante o dia pequenas gulodices conforme sua vontade. Como eu era feliz com aquele menino! Tão obediente, mas muitas vezes um respondão! Que feio! Então veio um carro e não viu Banzé, balançando o rabinho, para atravessar a rua. Nessa época pensei em beber, só que um amigo que é médico disse que seria meu fim. Não bebi. E agora minha bengala. Não consigo sequer ir ao banheiro sem ela: estou trêmulo, minhas pernas fragéis, meu equilíbrio já se foi a tempos. E comprar outra bengala... Ah, não! Seria jogar dinheiro fora. Já estou para morrer! O que fariam depois com minha bengala nova? Não, não é uma boa idéia. Talvez o melhor seja simplesmente deitar e aguardar a morte. Morrer. E deixar de ser feio e asqueroso aos olhos de meus netos. Parar de ser um peso nas costas dos meus filhos. Enfim, não mais desequilibrar a vida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Por que me tornei uma colagista

Em 2001 fiz um auto exílio na Suíça, em função de um casamento. Jornalista no Brasil, lá me descobri uma analfabeta. Além de precisar apre...