segunda-feira, 15 de março de 2021

Só renasce quem já morreu


 Eu morro todos os anos em duas datas. No dia 13 de janeiro, data em que meu irmão Francisco se acidentou de carro e me botou de frente com a existência real da morte. E nas proximidades de 16 de março, quando ele partiu de vez, depois de 63 dias em coma, em  uma fulminante parada respiratória. Ver meu irmão, na época com 28 anos, morrer foi das situações mais aterrorizantes que presenciei. Mortes inesperadas, de pessoas jovens cheias de saúde, comovem, destroçam, parecem ser anti naturais. Há 14 anos, no verão reproduzo as sensações daquele período. Os médicos, especialistas em luto, dizem que as nossas células fazem um registro destes momentos de dor intensa e que nos tais aniversários das experiências reproduzimos o registro. Todo ano tento controlar a ansiedade, a tremedeira, o choro compulsivo. Ano passado perdi a mão com a pandemia do covid. Este ano parece que vou perder de novo. Não sei fazer outra coisa a não ser chorar e escrever. Escrever para expurgar uma dor que nunca será domada. Ela é selvagem, finge ser domesticada, mas quando menos imaginamos explode em reações estranhas. No verão passo o tempo todo pedindo desculpas pelas minhas oscilações de humor, por uma quase histeria que esta dor me causa.

Sou a irmã mais velha. Depois vem a Cintia e o Francisco é o caçula. Nasceu prematuro, num parto complicado que quase levou nossa mãe. Ele foi o pequeninho da casa, que superou todo tipo de adversidade desde muito cedo. Eu observava meu irmão e pensava que a cada novo episódio da vida ele iria se desmontar. E ele se reconstruia. Capricorniano determinado aos extremos. Saiu de casa cedo, trabalhou cedo. Tudo foi cedo demais na vida dele. Até a morte. Era ele que me puxava as orelhas quando eu insistia em erros bobos. Era ele meu conselheiro para assuntos amorosos e profissionais. Era ele que enxergava meu talento quando eu queria fugir do mundo.

Meses antes do acidente ele me telefonou e me convidou para trabalharmos juntos. "Paty, vamos abrir uma empresa para escrevermos publicações técnicas, livros sobre turismo". Ele fazia uma especialização em Turismo, eu era assessora de imprensa em eventos. Topei na hora. A empresa foi batizada como Visit. Foi aberta. Mas não deu tempo de nada. Fomos atropelados pelo acidente. E eu briguei com Deus. Me senti perseguida, me senti abandonada.

Naqueles dias do coma do Francisco presenciei uma lágrima escorrendo do olho que ainda estava  são (no acidente meu irmão perdeu um olho, teve rompimento da carótida, traumatismo craniano. Teve o baço atingido). Uma lágrima enquanto eu cuidava dos pés dele. Enquanto eu massageava os pés dele conversava sobre todo tipo de assunto. Era nossa rotina. Contei para ele que faríamos um tapa olho e que ele seria o homem mais charmoso do mundo de tapa olho. Falei que iria massagear os pés dele todos os dias e que ajudaria em todas as sessões de fisioterapia. Eu não aceitava a morte naquele instante. E foi quando vi a lágrima escorrer. E eu chorei junto com ele. De alegria. Meu irmão estava vivo! Estava em coma, mas estava vivo. E eu chamei as enfermeiras, liguei para a família e prometi para Deus que daria meu maior talento, a escrita, em troca da vida do meu irmão. Meu irmão estava vivo. E naqueles últimos quinze dias da vida dele presenciei situações que só a espiritualidade nos proporciona. Ele falava comigo por aquele olho. Ele falava comigo por sonhos e silêncios. E quando enterrei meu irmão, em 17 de março de 2007, prometi que nunca mais escreveria, porque ele estava vivo espiritualmente e tinha me ensinado, naqueles poucos dias, que a vida é muito maior do que os nossos olhos conseguem enxergar. Eu tinha feito as pazes com Deus.

Voltei a escrever três ou quatro anos depois. A Lisiane Berti me convidou para escrever uma peça de teatro sobre sentimentos reais (Fantoches) e eu me permiti. A Associação Chico Viale me chamou a voltar a escrever para salvar vidas. Eu escrevo para viver, para amansar esta dor que tentou me matar, mas não conseguiu. Nesta pandemia fiz as pazes, em definitivo, com todas as minhas perdas. Como eu escrevi, no início, estou em dias de morrer. Mas quem morre renasce. A vida me ensinou isto.



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