segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Conhecer o escritor para gostar de ler

Sou leitora desde os cinco anos de idade. Irei fazer 45 em abril. Lá se vão quarenta anos lendo e nesta caminhada percebi uma coisa. Quando estamos envolvidos com a história, durante o período da leitura, pouco pensamos no escritor. O que importa são os personagens, a narrativa, o desenrolar das histórias. Mas sempre existe um momento em que nos tocamos que tudo aquilo saiu da cabeça de alguém. E daí pensamos no escritor/escritora. Como ele/ela chegou a este momento? Em que ele/ela pensou? Quais foram suas inspirações? Como é seu trabalho diário?



Pensando nestas questões veio a Pizza Literária. Conhecer um escritor, seus trabalhos e seu processo de criação. Por que? Porque muitas vezes o trabalho do outro pode nos inspirar para auto mudanças. Perceber a disciplina do outro para criar pode nos orientar a mudar pequenos hábitos, que façam melhorar o nosso trabalho.

Em fevereiro Júlio Ricardo da Rosa, autor de O Viajante Imóvel e O Covil do Diabo, entre outros títulos, esteve na Pizza Literária, evento promovido na Boutique de Pizzas Viale, em São Francisco de Paula. Fez um resumo das suas narrativas e falou sobre seus narradores diferenciados. "Uso discursos diferenciados para dar veracidade aos personagens", frisa o escritor.

Também lembrou que personagens secundários bem trabalhados ajudam a construir a história com mais dinamismo e verdade. Uma história não se faz somente de conteúdo principal, mas de redes estabelecidas entre todas as histórias. 


Um autor que acorda cedo diariamente e escreve três horas pela manhã, de segunda à sexta, como hábito. Aquelas horas são dedicadas à escrita. Não interessa se forem produzidas 10 linhas ou 100. Aquele horário é somente para escrita. "Tenho que cuidar do meu trabalho, do meu ofício, assim como se cuida do corpo, com horários para alimentação e exercícios", descreve Júlio.


No encontro tivemos a oportunidade de ouvir pequenos relatos sobre seus dois novos livros "O Amuleto de Angola" e "A Cicatriz Invisível", que estão para avaliação da editora. E ainda deixou escapar que está em processo de pesquisa para uma história de capa & espada contemporânea. Leitor insaciável, Júlio é fã do escritor belga Simenon e deu algumas sugestões de leitura para quem participava do encontro. "Leiam A Ilha do Tesouro", "Os Três Mosqueteiros" e "O Conde Monte Cristo". Vocês não irão se arrepender", sorri ele com as suas indicações.

A próxima Pizza Literária acontecerá no dia 28 de abril, sábado, com o escritor Cristiano Baldi e seu livro "Correr com Rinocerontes", publicado pela editora Dublinense.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Carne

por Patrícia Viale




Se eu fizer sangrar a noite toda será pouco. Tá entendendo Eleanor? Porque matar é fácil. Difícil é fazer sangrar. Minha vontade é botar cada um daquela família no abatedouro. Animais entram no abatedouro um a um. Tô acostumado com isto. Ver um a um morrer. Eles não me fizeram nada. Nem os bichos, nem a família dela. Só ela me fez. Ela nunca me olhou. Nunca notou meu olhar para ela. Nela eu queria dar uma marretada na cabeça. E não seria certeira. Eu erraria muitas vezes. Só para ver ela sofrer. Mandar juntar a família dela! Botaria eles todos num corredor estreito. Um atrás do outro. Sem roupa, suando. Faria barulho nas grades de metal. Bate, bate. Desesperados, tentando fugir de todas as formas, embolando um por cima do outro. Os olhos cheios de terror. Como eu iria rir de ti, Eleanor. Sentiu o cheiro do sangue da tua mãe quase morta? Vai caminha, segue. Teu pai, já sem força, caí. Teus irmãos, que ainda estão de pé, são forçados a prosseguir. Dá choque neles! Falsos amigos. Disseram que ela olharia para mim. E eu muito idiota acreditei! Olhei para ela, tentei falar com ela. Estamos chegando ao final do percurso, um por um, presos em gaiolas. Estão gostando? Ela riu da minha cara, amassou minhas flores. Disse que eu era um Zé ninguém. Ouviram? Ele não me quis. Sequer me olhou. Eu dou marretadas sim, tantas quantas forem necessárias. Até que tombem. Todos! Vou suspender cada um em ganchos. Dependurados todos. Vivos! Sim, a tua família ainda está viva. Tua mãe tá erguida por uma perna. Quer ver? Abra os olhos Eleanor, olha os músculos dela se rompendo. Olha Eleanor! E agora vem o melhor. Pegar uma faca. Uma bem longa e cortar a garganta de cada um, na veia jugular e na carótida, deixando-o sangrar até a morte, pendurado de cabeça para baixo. Olha Eleanor! Ao menos uma vez me olha Eleanor.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Borboletas Negras





Criação coletiva turma Trabalho do Ator 2016 – finalização Patrícia Viale
Setembro 2016

Vento nervoso lá fora. Janelas batem.
O açougueiro Fabiano entra em cena. Senta-se junto a uma mesa, onde tem uma máquina de escrever. Ao lado uma faca afiada. Ele fala em voz alta e datilografa. Um espírito está sentado próximo dele. Várias facas estão espalhadas pelo cenário.
Fabiano: Desde criança escuto histórias de causar medo. Meu avô era o homem que contava estas histórias. Contava e escrevia. Dizia que eu precisava saber o que acontecia além dos meus olhos. Algumas destas histórias ele tinha testemunhado. Outras ele tinha escutado. Eram histórias de terror, de amores destruídos num pequeno vilarejo, como o nosso. Um vilarejo onde o vento baixava a cabeça de todos. E cabeças baixas deixavam de pensar, apertavam corações e sufocavam vidas. A que mais me impressionou era a do enforcado Demétrio.
Márcia, filha de Fabiano, entra em cena. Dois espíritos entram com ela. Fabiano tem os olhos constantemente arregalados, como se estivesse sempre em alerta.
Márcia: Pai, olha estas facas todas espalhadas... isto é perigoso.
Fabiano: Sou um açougueiro, Márcia.
Márcia: Pai, escrevendo aquelas histórias?
Fabiano: Sim, filha. Preciso deixar estas histórias registradas. Isto é necessário e importante.
Márcia: Por que pai?
Fabiano: Para que todos saibam o que aconteceu.
Márcia: O que aconteceu?
Fabiano olha para a filha e fica mudo.
Márcia: O senhor é muito misterioso. (a filha beija o pai no rosto e os espíritos encostam suas mãos nele e Fabiano sente calafrios). Às vezes sinto medo deste mistério que vem do senhor. Vou sair. Volto logo.
Márcia saí de cena. E todos os espíritos saem com ela.
Fabiano sente-se mal, mas continua datilografando.
Fabiano: Voltando à Demétrio. Ele era um pobre coitado. Bebia demais, vivia de menos, mal quisto por todos no vilarejo por causa da bebida. Quando estava bêbado falava mal dos outros. Se metia em brigas de facas. Não fazia por mal. Como eu disse, o problema dele era a bebida mesmo. Falava muito da família Soares Albuquerque. Era inimigo da família nobre. Ninguém entendia a obsessão que ele tinha por aquela família. Conta-se que trabalhou muito tempo como jardineiro na grande casa. Teria conhecido Eleanor Soares Albuquerque quando mocinha. Eleanor era uma nobre destemida e terrível mulher que mandava matar quando se sentia insatisfeita. Uma linda moça, que implicava com as escravas bonitas. Não admitia que mulher alguma chamasse mais atenção que ela. Suspeita-se que Demétrio tenha se enforcado após uma confusão na mansão dos Soares Albuquerque. A tal árvore do enforcado ficava encravada numa curva. Contam os antigos que ele se enforcou pronunciando o nome de Eleanor. Meu avô confirmou esta informação numa carta. Escreveu assim: “A mulher mais radiante, a mais bela, a mais odiada, Eleanor”. Quando criança eu passava por aquela curva quase todas as noites. Pensava em Demétrio. À meia noite, o espírito do enforcado brilhava por entre aquela vegetação. Diziam que este brilho todo era o amor que ele tinha por Eleanor.
Rosangela, mulher de Fabiano, entra em cena. Dois espíritos entram com ela. Rosangela é uma mulher de postura corcunda, rosto triste, aparência de cansada. Não reclama da vida com palavras, mas com o corpo. Rosangela está chegando do trabalho. Venta muito na rua. Entra toda descabelada, arrumando o cabelo.
Rosangela: Fabiano, ainda aí?
Fabiano se assusta.
Fabiano: Mulher, não entre assim. Me assustou.
Rosangela: Cheguei faz pouco. Tem um vento nervoso hoje. E para completar aquela casa estava um caos hoje.
Fabiano: Por que?
Rosangela: Dona Eleanor acha que é dona de todas as vidas. Hoje todos foram mal tratados porque ela estava de mal humor. A mulher tinha perdido uma maldita blusa de renda e descontou em todo mundo.
Fabiano: E acharam a blusa?
Rosangela: Não. Eu desconfio de que a blusa está no quarto do amante.
Fabiano: Amante?
Rosangela: Sim, este é o comentário entre os empregados. De que ela está tendo um caso com o próprio sobrinho, Gustavo. Márcia não sabe da história. Quero ver quando descobrir.
Fabiano: Isto vai feder. É melhor não se meter. Márcia foi avisada que este rapaz não presta.
Rosangela: Vai feder mesmo. E vai sobrar para todo mundo. Mas eu não vou fazer nada. Aquela mulher é louca e ruim. Já jantou?
Rosangela tira uma faca da bolsa.
Fabiano fica olhando a mulher guardar a faca, mas não fala sobre o assunto. Apenas responde a pergunta feita por ela.
Fabiano: Já.
Rosangela: Comi as sobras de lá. Vou me deitar. Tô cansada, aquela louca nos tira o couro. Não demora para deitar.
Rosangela dá um beijo na testa de Fabiano e saí. Os espíritos tocam Fabiano, que sente calafrios. Fabiano continua escrevendo.
Fabiano: Ainda sobre Demétrio. O espírito dele brilhava à meia noite e pedia ajuda. Ninguém passava pela curva neste horário, somente os descrentes. E se ele se aproximasse para contar algo? Como ajudar um espírito, se perguntavam todos?
Fabiano fica olhando para a folha.
Fabiano: E se Eleanor estiver tendo um caso com o próprio sobrinho? Se for verdade, será um escândalo e minha filha ficará arrasada.
Fabiano olha para a folha e a tira da máquina. Coloca-a dentro de uma pasta, onde guarda todos os textos. E saí de cena falando consigo mesmo.
Fabiano: Vou me deitar. Amanhã chega uma carga nova de carne. Vou ter que matar sem intervalo para dar conta.
Os quatro espíritos que estavam com Márcia e Rosangela entram e se juntam a ele nesta última fala. Saem todos.
Durante a cena que Fabiano fica sozinho, o vento continua lá fora e as janelas batem constantemente.
O palco escurece para mostrar que uma noite passou.
Entram Rosangela, Márcia, Fabiano e os quatro espíritos. Os quatro espíritos se provocam, se empurram, parecem sugar os personagens. Rosangela arruma a mesa do café da manhã. Márcia fica olhando as unhas e Fabiano olha para frente, com um olhar de quem está se perdendo. Um espírito sussurra no seu ouvido coisas que não se entende.
Márcia: Estranho! Sonhei com borboletas negras esta noite.
Rosangela e Fabiano se olham.
Márcia: Meu quarto era tomado de borboletas negras e elas voavam pela casa toda.
Rosangela: Isto não é sonho, é pesadelo. Fica quieta e toma o teu café. Borboleta negra é mau agouro.
Márcia fica constrangida e cala-se. Volta-se para Fabiano.
Márcia: Pai, é verdade que a dona Eleanor mandou tirar os olhos de uma escrava, só porque a mulher era bonita demais?
Fabiano olha assustado para a filha.
Fabiano: Como você sabe desta história?
Márcia: Ela conta para todo mundo. Gustavo me disse que ela sente orgulho disto.
Rosangela: Como se pode sentir orgulho de tamanha maldade?
Márcia: Mas se a escrava aprontou bem que ela merecia. Escrava é escrava e dona Eleanor é dona Eleanor. Existe uma grande diferença.
Um espírito rodopia ao redor de Márcia comemorando os maus pensamentos da menina.
Márcia: Eu acho ela o máximo! Uma mulher de classe. Muito distinta, ambiciosa. Tudo que ela quer, ela consegue. Como não admirar alguém assim?
Rosangela: Você está escolhendo muito mal suas referências e suas admirações. Você não tem noção de quem é esta bruxa.
Márcia: Mãe! Você ta falando da tia do meu namorado! Ela dá tudo para ele. Gustavo é rico, lindo e poderoso graças a ela.
Fabiano: E o que mais você sabe sobre ela?
Márcia: Como assim?
Fabiano: Sabe algo sobre o passado dela? Sabe o que ela faz para ser tão rica? Márcia, você sabe com quem ela se deita?
Rosangela: Fabiano, cale a boca!
Márcia fica surpresa com a reação da mãe.
Rosangela e Fabiano se olham assustados com a quase confissão que provocaram.
Márcia olha para os dois: Mãe! Pai! O que está acontecendo? Será que vocês querem me contar algo?
Rosangela: Não Márcia. Não queremos te contar nada. Fique bem. Teu pai está com a cabeça cheia destas histórias de espíritos. É só isto.
Márcia: Vou sair. Não me esperem para almoçar. Irei encontrar Gustavo.
Rosangela e Fabiano tomam café da manhã. Rosangela com o olhar baixo, inferiorizado. Fabiano com os olhos arregalados, como se estivesse sendo perseguido por algo ou alguém.
Fabiano: Mulher, você não sente algo estranho?
Rosangela: Não.
Fabiano: Tem certeza?
Rosangela: Tenho. Escrever aquelas histórias tá te fazendo mal. Você fica vendo assombração por toda parte. Te corrige homem. Tenho que trabalhar. Coloca a louça na pia. E nada de abrir a boca sobre Eleanor e Gustavo. Entendeu?
Fabiano: Márcia é nossa filha. Ela deveria saber. Isto é injusto com ela.
Rosangela: Ela escolheu esta gente. Não podemos fazer nada por ela.
Fabiano: E sobre o resto?
Rosangela fica transtornada e pega uma faca. Aperta o cabo da mesma na mão e vira-se para Fabiano.
Rosangela: Se você contar algo para ela, ou qualquer outra pessoa, eu juro que te mato. Isto é assunto meu. Você jurou não se meter.
Fabiano: Calma mulher! Não vou falar nada. Só acho que este assunto está te consumindo.
Rosangela (transtornada, grita): Este assunto é meu! Não te mete.
Rosangela saí e os espíritos saem com ela.
Fabiano fica sozinho em cena.
A luz apaga. Fabiano saí do palco. Quando acende Márcia e Gustavo estão em cena.
Márcia abraça Gustavo: Que saudades!
Gustavo repele o abraço: Será?
Márcia: Por que você me trata assim Gustavo?
Gustavo: Porque não acredito que você goste de mim.
Márcia: Como assim?
Gustavo: Isto mesmo que você ouviu. Você não gosta de mim.
Márcia: Eu amo você Gustavo. Quero casar com você. Quantas vezes disse isto para você?
Gustavo: Dizer é fácil. Quero ver dar prova.
Márcia: Prova?
Gustavo: Sim, uma prova deste amor todo.
Márcia ficou pensativa.
Márcia: O que seria uma prova de amor para você?
Gustavo: Algo muito forte. Algo bem difícil. Algo bem amor. Algo como... matar seus pais.
Márcia: O que?
Dois espíritos rondam o casal.
Gustavo: Sim, você me ama tanto que tem coragem de matar seus pais. Não é uma grande prova de amor?
Márcia: Isto é loucura!
Gustavo: Por que? Seus pais estão velhos, não são ambiciosos. Não farão falta alguma no mundo.
Márcia: Eu não acredito que você está falando isto.
Gustavo: Ou isto ou me esqueça. Vou te dar um tempo para pensar. Avalia a situação e depois conversamos. (Gustavo toca no braço de Márcia, puxa ela pela cintura para beija-la).
Márcia (repelindo Gustavo): Eu vou embora Gustavo. Acho melhor você pensar bem sobre o que acaba de me propor. Isto não é proposta, é uma total loucura.
Gustavo: Você é que precisa pensar Márcia. Esta é a condição para ficar comigo.
Márcia: O quê?
Gustavo saí, com os espíritos atrás dele comemorando, e manda beijinhos para ela, com uma cara sarcástica. Gustavo sabe que Márcia ficará sofrendo e isto provoca prazer.
Márcia saí de cena.
A luz apaga. Quando acende Gustavo está sentado numa cadeira. Entra Eleanor Soares Albuquerque, tia de Gustavo. Ela é soberana, anda de cabeça erguida. Mexe as mãos constantemente e não abaixa a cabeça. No vestido dela tem a estampa de borboletas negras. Três espíritos entram em cena e se movimentam enquanto eles falam.
Eleanor: O que foi Gustavo? Parece aborrecido.
Gustavo: É Márcia.
Eleanor: Aquela pobre.
Gustavo: Eu até gosto dela tia, mas ela me entedia. Fica só falando em amor, em mimimi. Eu preciso de emoções fortes. Pedi uma prova de amor hoje e ela deu prá trás.
Eleanor: Interessante. Qual foi a prova de amor pedida? (ela acaricia os cabelos dele).
Gustavo (inquieto, excitado): Pedi que ela matasse os pais dela.
Eleanor (olha o sobrinho de maneira surpresa): Ambicioso você. Gosto disto. E o que ela disse?
Gustavo (chateado): Que era loucura da minha parte.
Eleanor: Bem se vê que ela não é mulher para você. Nada determinada. Pensa pequeno. Por amor se faz loucuras. Eu mesma já fiz muitas. Loucuras são muito bem vindas nesta vida repleta de tédio.
Gustavo: Como a escrava que você mandou tirar os olhos? (Gustavo pega Eleanor pela cintura).
Eleanor: Sim, é verdade. A negrinha olhava para o seu tio com olhos de desejo. (Gustavo segura a cintura dela por trás e Eleanor acaricia o rosto dele enquanto fala sobre a escrava). Era um fogo louco. Seu tio ficava possuído, corria atrás daquela vadia. Virava um animal. Presenciei cenas absurdas. Percebi que em pouco tempo seu tio enlouqueceria e destruiria toda a família. E isto eu não poderia aceitar, não é mesmo? Então mandei cavar dois buracos na cara daquela inútil. Parece que ela morreu tempos depois. Bem feito!
Gustavo: Admiro você, minha tia. (Gustavo beija Eleanor no pescoço) Não leva desaforo para casa, luta pela sua família.
Eleanor (olha Gustavo de frente, olho no olho): Gustavo, a nossa família é tudo. Somos a nobreza deste lugar fétido. Somos os guardiões dos valores e das tradições. Não podemos nos rebaixar e muito menos deixar esta gentalha mudar a ordem das coisas. Estas pessoas são ignorantes, precisam de nós como líderes. Entre esta gente e um porco eu prefiro um porco assado no jantar.
Gustavo: Sim, tia.
Eleanor faz tom de manhosa: Na verdade, eu gostaria que você se afastasse desta menina, Gustavo. Ela é uma pobre ninguém. Pode até te dar filhos defeituosos. Imagina, filha de um açougueiro e uma governanta! O que pode sair desta junção? Sinceramente, você não tem medo de contrair uma doença?
Gustavo observa a tia e dá uma risadinha.
Gustavo: É mais fácil eu contaminar ela.
Eleanor com voz determinada: Mas, pensando melhor, se ela te der esta prova de amor... Ah! Daí ela se mostrará uma possível mulher de estirpe, de grande valor. Alguém que até merece estar ao nosso lado. Poderemos orientar a mocinha a ser um ser considerável. Tenho algo para te dar que ajudará neste plano.
Os dois se olham com cumplicidade e Eleanor pega na mão de Gustavo.
Eleanor: Já ouviu falar em ricina? Sem antídoto meu querido. Sem solução. Morte certa em poucos instantes.
Os dois saem de cena.
Márcia está em casa. Encontra o pai com o avental de açougueiro todo sujo na sala.
Márcia: Pai, olha a sujeira deste avental. A mãe vai brigar com o senhor. Tem pingo de sangue por tudo.
Fabiano está acompanhado de um espírito. Fabiano tem uma faca na mão. O olhar dele é perplexo. Como se tivesse recém matado alguém.
Fabiano fala brabo: O que é menina? Me deixa em paz. Eu estava trabalhando.
Márcia: O senhor nunca falou assim comigo!
Fabiano: Você me deixa nervoso! Parece que não sabe que meu trabalho é matar.
Márcia coloca as mãos no rosto e saí chorando.
Fabiano saí de cena pelo outro lado. O espírito junto.
Márcia entra em cena e fica num cantinho. Um espírito entra junto e fica acariciando a cabeça dela.
Márcia: Eu amo Gustavo, mas não posso matar meu pai. Mesmo meu pai sendo aquele homem bruto, eu não tenho coragem de matar ele. Tenho que falar com Gustavo, fazer ele mudar de ideia.
Márcia saí para encontrar Gustavo. O espírito rasteja atrás dela.
Márcia e Gustavo se encontram. Dois espíritos juntos.
Gustavo: Então, pensou na prova de amor?
Márcia: Pensei. Não sei como fazer isto. Como irei matar meus pais? Você tem que mudar de ideia.
Gustavo fala com jeito apaixonado: Por amor a mim. Você não faria isto por amor a mim?
Márcia se mostra confusa. Os espíritos a abraçam.
Márcia: Vamos nos casar em seguida? Você jura? Promete que não me deixará?
Gustavo: Sim, logo após o fato nos casaremos. Com festa, lua de mel. Com tudo que uma linda noiva merece.
Márcia: Eu nunca matei. Não sei como fazer isto Gustavo.
Gustavo tira um saquinho do bolso e entrega para Márcia.
Márcia: O que é isto?
Gustavo: Aqui tem uma boa dose de veneno. Ricina. Cerca de sessenta microgramas neste pacotinho. O suficiente para matar os dois. O mais letal veneno de origem vegetal, a ricina é uma proteína isolada das sementes de mamona. É só colocar numa bebida, de sabor forte, mexer e pronto. Em instantes teremos um festival de diarréia, vômito com sangue e logo mais os dois estarão mortos.
Márcia apavorada: Você trata um assunto tão delicado como se fosse algo comum. Envenenar alguém não é um assunto corriqueiro. Ao menos para mim não é.
Gustavo: Faz parte da vida Márcia.
Márcia: Você mataria seus pais?
Gustavo pensa em Eleanor: Por amor a alguém, sim. Sempre. E não se preocupe, a dose é alta. Será tudo rápido. Ou você prefere um corte no pescoço do seu pai? Você sabia que se uma pessoa cortar a aorta num acidente vai morrer em segundos. No entanto, se for uma artéria ou veia menor, o processo pode demorar horas e a pessoa passará pelas diferentes fases de um choque hemorrágico. O que você prefere? Consegue acertar a aorta de primeira? Posso arranjar uma boa faca.
Márcia fica olhando espantada para Gustavo, que está balançando o saquinho na mão.
Gustavo: Pensa Márcia! Minutos depois da ingestão desta dose começarão os vômitos e a diarréia. Em casos de intoxicação aguda, surgem lesões nos intestinos, fígado e boca. O envenenamento pode levar à falência renal e tem efeitos perversos no sistema nervoso. (Gustavo ri muito com a própria explicação) A pessoa se torna irritada, paranóica, sofre de tremores, fala e age como louca. Viu como eu sei tudo sobre veneno? O que acha? Prefere sangue escorrendo ou um pouco de vômito?
Márcia chora baixinho e pega o saquinho.
Gustavo abraça Márcia. Os espíritos abraçam os dois.
Gustavo: Pare de ter medo Márcia. Agora vá e faça a sua parte. Eles morrem. Você cumpre o tempo necessário do luto e nos casaremos.
Márcia se despede de Gustavo, guarda o saquinho e saí. Gustavo saí para o outro lado. Os espíritos se separam e acompanham eles.
Márcia janta com o pai e a mãe. A mãe levanta e tira a louça suja para colocar na pia.
Rosangela: Márcia, coloca água para ferver prá fazer o café.
Márcia levanta da cadeira e treme. Ela está nervosa. Coloca a mão no bolso e sente o saquinho com o veneno.
Márcia: Sim, mãe.
Márcia olha fixamente para o pai. Como uma despedida. O pai olha para ela. Ela corre para aquecer a água. Rosangela sai de cena dizendo que vai ao banheiro. Fabiano fica sozinho na mesa e Márcia fazendo o café. Ela coloca o veneno na jarra de café, pega os xícaras, o açúcar e leva tudo para a mesa.
Fabiano arruma seus papéis na mesa para continuar escrevendo a história. Márcia o observa.
Fabiano: Estou descobrindo coisas terríveis sobre a família do seu namorado, sabia Márcia?
Márcia fica assustada.
Márcia: Tipo o que, pai?
Fabiano: A tia do seu namorado, Eleanor Soares Albuquerque parece que teve uma criança fora do casamento.
Márcia: Como assim?
Fabiano: Encontrei anotações de meu avô contando esta história. Demétrio, o enforcado, era jardineiro na mansão, bem na época em que Eleanor era uma mocinha. Dias depois que ele se enforcou, Eleanor foi mandada para a casa de uma tia na capital. Voltou um ano depois, casada, com uma escrava que tinha uma filha branca. Não parece estranho? Não parece existir uma relação entre Eleanor e o enforcado?
Márcia fica nervosa e esbarra numa cadeira. Ela se vira para servir o café.
Márcia: Quer café pai?
Fabiano: Sim, eu quero.
O pai toma a xícara de café que Márcia serve. Rosangela continua no banheiro. Márcia fica de costas para o pai. Não consegue olhar para o pai. O pai está escrevendo suas histórias e quando começa a se sentir mal chama por Rosangela. Rosangela vem num passo acelerado. Fabiano olha para Rosangela e entrega a pasta com as histórias para ela. Fabiano está asfixiado, mas consegue falar algumas palavras.
Fabiano: Foi ela Rosangela. Foi Eleanor.
Após falar Fabiano caí no chão, rasteja e morre. Rosangela segura a cabeça do marido e olha aflita para ele. Ela grita por Márcia. Márcia entra em cena transtornada e olha apavorada para a mãe segurando a cabeça do pai.
A luz apaga e todos saem de cena. O palco fica vazio.
A luz acende. Rosangela entra. Muito desfigurada. Atravessa o palco se lamentando. Ela se arruma para trabalhar.
Rosangela: Por que? Por que a vida tomou meu marido? O que fiz para viver sozinha. Só me resta trabalhar e continuar esta vida medíocre. Abandonada, esquecida, renegada a ser uma empregada. É isto mesmo?
Rosangela pega a bolsa. Continua sendo uma mulher obediente e servil. Mas percebe-se que está guardando raiva. Os dias passam e Rosangela calada aguenta as ofensas de Eleanor. Márcia, tomada de sentimento de culpa por ter matado o pai, afasta-se da mãe e faz todas as vontades de Eleanor.
Em cena, Gustavo, Márcia e Eleanor estão tomando café. Eleanor chama Rosangela. Ela chega. Os espíritos se movimentam na cena.
Rosangela, de cabeça baixa, pergunta: O que a senhora deseja?
Eleanor com um sorrisinho derruba café no chão e diz: Limpe!
Rosangela se abaixa e limpa com um pano. Eleanor coloca os pés nela e a joga ao chão. Gustavo e Márcia (constrangida) riem. Eleanor, com ar superior, observa a humilhação de Rosangela, que limpa o chão de joelhos. Rosangela saí do meio deles e fica atrás dos sofás, onde eles estão sentados. Rosangela pega uma faca entre talheres que ficaram sobre a mesa e degola primeiro Gustavo. Gustavo se debate no chão e morre.
Rosangela olha para Márcia e diz: Vá para o inferno filha sem coração! Eu sei que foi você quem matou Fabiano. E matou para atender um desejo desta mulher injusta (aponta para Eleanor, que está indiferente).
Rosangela olha a filha nos olhos e passa a faca no seu pescoço. Márcia caí e morre.
Com a faca na mão olha para Eleanor e diz: Você abusou de tanta gente. Você acabou com várias vidas. E para quê? Por que? Para sentir prazer. Um prazer sórdido e mesquinho.
Eleanor observa Rosangela sem alterar a fisionomia de superioridade. Ela levanta do sofá e Rosangela a empurra.
Rosangela: Fica aí monstra. Eu matei minha filha, tá achando que vou te deixar quieta?
Eleanor não baixa a guarda e fica encarando Rosangela.
Rosangela: É bom torturar os outros?
Eleanor: Eu nunca torturei os outros. Apenas dei o que mereciam.
Rosangela: Os outros mereciam crueldade?
Eleanor: Você tem um conceito para crueldade, que certamente não é o mesmo que o meu.
Rosangela aproxima a faca do rosto de Eleanor: O que é crueldade para você?
Eleanor: Você se achar no mesmo nível que eu é crueldade. Uma mulher estúpida se igualar ao meu nível e se achando no direito de colocar uma faca no meu rosto. Isto é crueldade.
Rosangela: Pois eu acho que isto é justiça.
E Rosangela pica a orelha de Eleanor. Eleanor coloca a mão e saí do sofá. Passa a mão na orelha que sangra, mas retoma a postura.
Eleanor: É o seu melhor vadia?
Rosangela: Não. Este é o meu deslize. Olhei para os seus olhos e tive um momento de ternura.
Eleanor: Ternura? Você? Acaba de matar sua filha e meu sobrinho e vem falar em ternura.
Rosangela: Eu não matei seu sobrinho. Eu matei seu amante. E quanto a minha filha eu somente antecipei o encontro dela com o pai, que deve estar cheio de saudades da filha querida e assassina.
Rosangela e Eleanor se observam. Rosangela continua com a faca apontada para Eleanor.
Eleanor: Deveríamos conversar. Sentar e conversar.
Rosangela: Claro. Na poltrona ou no sofá?
Eleanor: Onde achar melhor.
Rosangela: No sofá. Lado a lado. Como convém a duas pessoas que deveriam ter alguma intimidade.
As duas sentam-se no sofá.
Eleanor: Desculpe, mas por que eu deveria ter alguma intimidade com você?
Rosangela: Você não sabe?
Eleanor: Se estou perguntando é porque não sei. Ou acha que sou uma idiota como você?
Rosangela: Não, você não é uma idiota.
As duas se observam. A faca continua apontada para Eleanor.
Eleanor: Se você não vai falar gostaria de pedir que se retirasse. Tenho muito que arrumar nesta sala.
Rosangela: Só nesta sala?
Eleanor: Eu não entendo suas charadas. Quem sabe você opta por ser mais direta.
Rosangela: Mais direta? Esta é a sua vontade madame?
Eleanor: Sim, admiro pessoas práticas e objetivas.
Rosangela: Não seja por isto.
Rosangela crava a faca no pulmão de Eleanor.
Eleanor não consegue gritar. Rosangela retira a faca rapidamente do corpo, para que o sangue comece a esvair e lentamente Eleanor irá morrer.
Rosangela: Dona Eleanor, pelos meus cálculos, temos alguns minutos juntas e você não poderá gritar, muito menos fugir. Teremos o máximo de nossa intimidade. Uma intimidade que nos foi roubada, não é?
Eleanor está sofrendo e olhando para Rosangela.
Rosangela: Uma filha branca criada por uma escrava negra. Uma intimidação para trabalhar nesta casa assombrada. Um pai enforcado. O que mais você tem para me contar, mamãe?
E Rosangela esfaqueia Eleanor várias vezes.






sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Ao poeta que a mim nunca escreveu...

por Patrícia Viale



foto de Rafael França


Por quantas liras tu me deixaste? Seriam trezentas, vinte ou apenas dezenas? Podes crer em amor quando existe dinheiro?
Nascemos fora de nosso próprio tempo: tu antes e eu após a tua morte.
Nada somos um para o outro, apenas esse amor que me queima, que me enlouquece, que me faz ver-te onde nada há de ti...
Onde estariam as liras nesse mundo cinzento, amargo e ambicioso?
Quem ainda escreve cartas de amor e as manda por um mensageiro?
Quem rouba beijos?
E quem ainda ousa acreditar em se ser somente um poeta, sem nada a ganhar ou a perder?

Nada somos um ao outro, somente esse amor cego e absurdo...

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

O Rei Gordo

por Patrícia Viale

Era uma vez um rei gordo que tinha RG, título de eleitor e CPF guardados na carteira. não tinha coroa. Pois coroa não se adquire, se merece, dizia a vidente que tanto o aconselhava. O rei gordo não se importava com a coroa, pois tinha ele um castelo branco. Um enorme castelo branco sem torres.



Seu reinado começou no Ano da Lua. A vidente afirmava ser um ano de mais afetividade entre as pessoas, de preocupação com o meio-ambiente, em especial a água. Também salientava a aproximação facilitada entre as pessoas. O reio gordo, confiante nas palavras da vidente e nas forças lunares, recebeu os primeiros súditos no salão de recepção do seu castelo. Os plebeus Sálvio e Santos pediam iluminação na sua Padilha Sombria, localidade de escuridão e ataque de dragões. O rei gordo os fez sentar, chamou o fotógrafo e disse para fazer foto da autoridade e dos plebeus. A foto ficou registrada, guardada em alguma gaveta. A reivindicação não foi anotada. Isto não tinha importância. Este governo seria transparente. A casa do rei era a casa dos seus súditos. Assim repetia o conselheiro do rei gordo, que tinha os cabelos vermelhos e um bloco para anotações. Este risonho conselheiro usava uma caneta de tinta mágica. Minutos após escrever os pedidos, a tinta desaparecia e tornava todas as palavras invisíveis.

Numa tarde quente dos primeiros dias de janeiro o rei marcou reunião com seus secretários para discutir a situação do Arquivo Histórico. Um dos secretários perguntou o que era este arquivo. Outro tentou explicar confundindo ainda mais. O rei gordo, por fim, disse que a papelada sobre a história de seu reino estava jogada no porão ocupando espaço. Foi quando o conselheiro de cabelos vermelhos, que todos diziam ser uma peruca mal feita, sugeriu queimar os papéis e abrir espaço para coisas mais importantes. Alguém questionou o que seria mais importante. Ninguém soube responder. O silêncio tomou conta e o rei gordo interpretou aquilo como uma resposta positiva. Mandem queimar tudo. E se foram os guardas do reino incendiar papéis amarelados pelo tempo.



Sexta-feira era dia complicado no castelo branco sem torres. Muitos compromissos. Naquela semana visitas de outros reinos trariam novidades ao rei obeso. A princípio ele estava concordando, mas depois de minutos de reflexão alterou a sua agenda. Os visitantes esperavam-no na sala de recepção e um plano de emergência tivera de ser traçado para que os estrangeiros não ficassem esperando. Tudo resolvido. Alguém foi até . Alguém foi questionado sobre as ações do governante e Alguém não soube responder. Os estrangeiros voltaram para a sua terra sem nada compreender.

O rei acreditava que o dom era a maneira escolhida pelo Criador de se servir ao mundo. O rei acreditava nos seus dons. Um dia perguntei quais seriam os seus. Ele não respondeu. Olhou-me demoradamente, levantou do trono e saiu da sala. Eu nunca soube sobre seus dons.

Nova semana de trabalho. Ordens a seguir: limpar os galhos das árvores ao redor do castelo, não botar lixo ao redor do castelo, não misturar entulhos e lixo verde. Enquanto isto Sálvio e Santos matavam suas últimas galinhas para alimentar suas famílias.

 Naqueles dias passaram pelos salões reais Eduardo, Leônia, Helton, Jaqueline, Catarina, João, Simão, Romeu, Seu José, Júlio e alguns outros. Os nomes estão anotados na agenda real, ao lado dos horários em que foram recebidos. Também estão marcadas as cadeiras, onde cada um sentou e como estava o céu no dia em que foram atendidos. Tudo muito explicativo. O rei estava contente.



Foi comentado em um beco “A gente não é o que diz que é ou pretende ser, a gente é o que faz ou deixa de fazer”. Poucos escutaram. Naquela noite distribuíram vinho ao povo.

Parem tudo, gritava o rei gordo. Um novo fogão seria instalado na cozinha real e o rei queria a atenção de todos. Agora teremos comida boa. Teremos calor e principalmente motivação para cozinharmos nossos alimentos. O rei acreditava na energia da comida. Todo dia comia bolachas de água e sal, bebia uma água energizada e fugia das comidas importadas. Estas não prestam. Baixo teor nutricional e impostos pagos aos outros reinos. Distribuam farinha e água para as mulheres do reino sovarem minhas bolachas.



Muitos dias depois alguém lembrou de Sálvio e Santos. Mandem colocar luz na Padilha Sombria, urrava o rei gordo de raiva. As galinhas destes homens morreram por falta de aquecimento no galinheiro. Velas e lenha foram enviadas às pressas aos súditos.

Tinha torneio esportivo no reino. Pediram a bandeira real para hastear no início das competições. Seria impossível. A bandeira estava desaparecida. Como saber a sua localização se até mesmo o rei tinha sumido naquela data? A presença real tinha sido anunciada, mas o rei gordo não estava presente. Procuraram em todos os cômodos do castelo branco. O rei estava no andar mais alto idealizando as torres que o castelo não tinha. Alguém falou isto é trabalho para um engenheiro. O rei respondeu: eu sou o comando maior. Na outra semana pedreiros contratados, em caráter de urgência, interpretavam os rabiscos do líder máximo.

Teve reunião na região. Castelos vários se juntaram para discutir seus planos diretores, o destino de seus esgotos, a urbanização da plebe. O rei não quis ir. Mandou assessor. Seu castelo branco não tinha plano de coisa alguma. Mas as placas irregulares dos vendedores das feiras foram retiradas do pátio central. Tudo limpo e organizado. Enquanto isto as torres eram construídas.

Ana Clara pediu emprego de camareira. Alvori, isenção de impostos. João Carlos, de outro reino, queria patrocínio do reino de para escrever poemas do reino de . A garganta passou a doer. Seria o final do verão ou o início dos nós na garganta? Procurei uma benzedeira, que desmaiou ao me benzer.

Pediram um relato das primeiras ações de governo. Dei voltas e reviravoltas. Não escrevi uma linha sequer, apesar de todos os amigos do rei gordo estarem sempre sorrindo. Seria a comida feita no novo fogão?

O rei queria dar sapatos aos súditos. Chamou um artesão famoso em costurar couro no couro. Ele ensinaria aprendizes e sapatos seriam confeccionados. Futuramente distribuídos entre os mais necessitados. Os conselheiros brigavam para acompanhar a reunião do rei com o artesão. Todos queriam saber quanto seria gasto em couro. Onde o couro seria comprado. O conselheiro de cabelos vermelhos conhecia um vendedor de couro. O conselheiro quase tão gordo como o rei também conhecia um vendedor de couro. O rei mais gordo que todos os outros apenas ria.

Papéis se espalhavam no salão real. O que está acontecendo? Era o rei procurando uma de suas grandes idéias para implantar no reino. O rei tinha um banco de idéias, separado por assuntos, prioridades e ordem alfabética. O problema todo é que o rei não conseguia lembrar qual era a grande ideia a ser implantada.



Nova agenda: Tânia, Valdete, Márcia, Vanderlei, Priscila, Marcos, Sandro e Ricardo estiveram no reino para buscar algo. Saíram carregados de promessas e belas palavras.

Reunião no gabinete real. Um homem cheio de posses queria realizar grande festa para o povo. não sabia como. Não sabia com que dinheiro. Não sabia que festa. Mandaram chamar Alguém para dar orientações. A reunião durou horas e todos perderam o almoço feito no fogão real.

Montesquieu, aquele francês das antigas, que escreveu sobre as várias formas de governo e como estes poderiam ser preservados da corrupção, disse que para se alcançar o êxito na sociedade era preciso ter ar de louco e ser inteligente. O rei gordo mudou o olhar e escabelou a pouca cabeleira. Nada mais.

Diz o rei que vai cobrar taxa, dos outros reinos, sobre o uso da água que brota nas nossas terras e corre para estas outras terras. Quem quiser tomar água que pague pela sua caneca cheia. Um outro decreto, do Reino Maior, promete controle maior, por parte da sociedade, sobre a qualidade dos serviços prestados e a prevenção de danos à saúde da população. Quem encher a sua caneca de água terá o direito de receber um relatório detalhado sobre o líquido que bebe. Este decreto não me interessa, completa o rei. As moedas é que valem.



Alguém falou com Graziele e Breno sobre a iluminação para aquela festa sem nome, a festa feita para o povo? Não mandaram carta real, não haverá luz para as danças. A festa para o povo ficou no papel e o ouro da festa no bolso do homem cheio de posses.

Baixaram meu salário. Moedas a menos no final do mês. Explicação? Apenas um sorriso, tapinha nas costas e o comentário de que a vida seria mais feliz com pouco ouro. Assim pensava o rei gordo. Minhas contas não pouparam as moedas de menos e com o nome sujo na praça fiquei.

Se ouvia das bocas dos conselheiros reais: em qualquer planejamento é preciso colocar números, datas e resultados esperados. Nunca vi um destes, mas aprendi muito sobre discursos.


                              

Por que me tornei uma colagista

Em 2001 fiz um auto exílio na Suíça, em função de um casamento. Jornalista no Brasil, lá me descobri uma analfabeta. Além de precisar apre...